Corrida ao Templo da Ilha

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O vento soprava de maneira branda o bastante para que não fizesse nenhum estrago às plantações que ficavam próximas às casas da aldeia, mas também tinha a força necessária para que nenhum vülro ousasse sair de sua toca. Os pólens dos jörk hikürøs estavam espalhados por todo o ar, a natureza lupino-mágica dos vülro os fazia com que fossem facilmente afetados pelo pólen destes cogumelos.

Jörk hikür. Cogumelo da terra. Uma praga em formato de cogumelo.

Nós temos todo o cuidado para prepararmos de forma que fiquem próprios para consumo, conseguimos extrair com precisão os bolsões de veneno e pólen do cogumelo, mas isso somos nós, os Kanay, não animais da floresta, tampouco bruxos, humanos ou os klørøs o conseguem extrair com tamanha perfeição com a que fazemos...

Bem, nem todos os Kanay são perfeitos em tudo o que fazem, ou pelo menos o meu filho não é. Hanvar é um menino muito inocente, na manhã de hoje, enquanto pela floresta passeávamos, encontramos um bruxo desacordado na clareira da floresta.

— Vamos ajudar — foi o que meu filho me disse assim que viu o homem desmaiado, quase encostando as mãos em um jörk hikür.

— É um bruxo — eu esperava que minha única resposta, minha única fala, já fosse um indicativo bem claro: não vamos procurar problemas, vamos embora.

— E? — não acredito que eu realmente ouvi ele me questionar sobre o bruxo ser um bruxo.

— Temos que ir embora!

— Vamos mesmo deixar alguém agonizando até morrer?

Eu não consegui resistir quando me foi posto desta forma, aparentemente bruxos ainda são seres dignos de nossa compaixão, mesmo que no futuro este bruxo venha a destruir a nossa aldeia que há muitos séculos lutamos para que seja preservada. Levamos o bruxo até nossa casa, Hanvar não saía da cozinha, mas ele só fez isso porque me deixou de vigia do garoto moribundo que estava dormindo em seu quarto. E pensar que eu tinha lavado anteontem aquela roupa de cama, agora ela estava toda manchada de barro e sangue.

Aquele cheiro de sangue de bruxo, ainda mais se tratando de um garoto passando pela puberdade — e que tardia puberdade vivida em plenos dezoito outonos —, empesteou o quarto. Talvez eu estivesse exagerando, mas eu realmente não gosto de bruxos. Ainda mais quando eu precisei tirar seu colete e sua camisa, e presenciar cicatrizes tão mal cauterizadas como aquelas em seu peito. Para a sorte do bruxinho adormecido, eu deixo à mão de meu filho um conjunto de óleos, cremes, ervas e um guia de como realizar os primeiros socorros usando magia elemental.

Um pouco de handa trævo ër posto em água limpa, as pontas das folhas esquentam a água assim que postas em contato. Em seguida, moer semente de handa kåçäk, com pólen de ïstå hikür, em pedra molhada com a água requentada com as folhas de handa trævo ër. O pólen rapidamente congela a água e cria uma fumaça, que é quem faz o veneno da semente sair em formato de óleo.

Depois de todo o processo, entra em jogo todo o domínio elemental para transformar aquele vapor todo em água. É uma questão de ter foco, exercer autocontrole, e, em um estalar de dedos, o vapor retorna à pedra e volta a ser líquido. Agora, com um suave gesto de mãos, como um maestro que conduz a orquestra com a batuta, eu conduzo aquela água às cicatrizes do bruxo.

Inspiro, expiro. Busco me centrar, agora a água em gelo deve se tornar. Mais uma vez, inspiro, expiro. Ao soltar o ar, um vento gelado entra pela janela e toma controle do quarto por um breve segundo, congelando a água que sob as cicatrizes estava.

O calor do corpo do bruxo iria derreter aquela água aos poucos — ou aos muitos, já que ele estava começando a ficar febril quando com ele chegamos a Kärví —, deixando o veneno agir e cauterizar de forma apropriada as feridas abertas em seu peito. Como eu havia dito, rapidamente o calor de seu corpo derreteu o gelo, e a carne exposta havia absorvido as propriedades do remédio. Não que eu me importe, mas agora tenho de cuidar para ver se ele não vai soltar pus verde ou amarelo — pode parecer nojento, mas pus verde é sinal de raiva, já o pus amarelo é sinal de tétano.

Corrida ao Templo da IlhaOnde histórias criam vida. Descubra agora