Parte I - Barbaduque

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"A emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o mais antigo e mais forte de todos os medos é o medo do desconhecido."

H. P. Lovecraft


— Eu nunca contei essa história antes, nem mesmo para o avô de vocês. — Olhei para todos os meus netinhos queridos, que me encaravam de volta, cheios de expectativa. Helena e Helen estavam sentadas ao meu lado, enquanto os outros meninos e meninas estavam no tapete felpudo, ansiosos por mais uma história.

— Mãe, você não vai contar outra daquelas suas histórias mirabolantes, não é? — os demais adultos, incluindo meus filhos, estavam reunidos ao redor da mesa, aproveitando o cafézinho da tarde e o bolinho de fubá que havia feito naquela manhã.

— Carolina, Carolina. Você sabe que a mamãe não se aguenta! — Samuel disse entre risadinhas, fazendo com que os outros convidados também rissem.

— Quietos, os dois! — lancei-lhes um olhar irritado. — Vou começar a contar a história de como conheci o velho Barbaduque pela primeira vez. Não, essa não é uma simples história, crianças. Esse evento me tirou noites de sono e, em certo momento, eu mesma quis me internar! Foi um pesadelo. Ainda penso na sorte que tive em sair viva daquela situação. Mas não vamos demorar... Carolina, me traga uma dessas xicrinhas de café, vou começar a contar minha história.

"Tudo começou quando fui visitar o finado Antônio, meu paizinho, lá no interior de Pernambuco. Eu precisava chegar ao Porto dos Pedregulhos, mas as passagens de ônibus estavam muito caras. Frustrada, fui abordada por um bom moço de cabelos castanhos e barba rala que vendia amendoins na rodoviária. Ele perguntou o que havia acontecido, e eu expliquei que precisava ver meu paizinho, mas não tinha dinheiro suficiente para a passagem. Foi então que o moço sugeriu um caminho alternativo, um caminho que, depois de tudo, eu gostaria que ele nunca tivesse sugerido.

— Você poderia ir de balsa até Véu Branco, fia. Simões cobra baratinho pra atravessar — sugeriu o moço, puxando um cigarro e uma caixa de fósforos do bolso da calça. Não demorou a acendê-lo entre os lábios rachados. — Chegando lá, você pode pegar o ônibus que sai às 16h; lá eles cobram mais barato na passagem.

É claro que suspeitei daquela sugestão, nunca sequer tinha ouvido falar de um lugar chamado Véu Branco. O moço me explicou que o lugar não era nem uma cidade, mas sim uma vilazinha. Ele contou que poucas pessoas viviam lá e eram bastante reclusas. Eles tinham seus próprios métodos e rituais, e quase ninguém ia até lá. Quando o bom moço estava prestes a explicar a distância entre Véu Branco e o Porto dos Pedregulhos, ele parou subitamente e encarou o céu. Seus olhos estavam arregalados e suas bochechas coradas, enquanto seu cigarro, quase terminado, pendia em seus lábios.

Tentei chamar sua atenção de volta, balançando minhas mãos em frente ao seu rosto. O homem pareceu voltar à realidade, fixando seus olhos escuros e penetrantes em mim.

— Sim...é mesmo...— ele resmungou, coçando a barba. — Talvez não seja uma boa ideia. — questionei a súbita mudança, é claro, pressionando-o a explicar por que não deveria mais ir até Véu Branco. Envergonhado, ele se desfez da bituca de cigarro e respondeu: — Eles estão passando por um momento muito difícil. Assassinatos, se assim posso dizer. — Isso apurou minha curiosidade. Como uma boa jornalista jovem e corajosa, pressionei o homem a contar mais. — É a época do Barbaduque.

Aquele moço que vendia amendoins na rodoviária me contou a história de um homem chamado João Pereira Garcia Barbaduque. Ele era um homem solitário que vivia recluso na vila. Era muito pobre, mas conseguia alguns trocados vendendo os peixes que pescava no porto. Era muito religioso e, todo domingo, sem falta, ia à missa. Em um dia qualquer, Barbaduque apareceu todo pomposo, com roupas novas e acessórios caros, sem dar explicações. Parecia que tinha ganhado na loteria. Mas com o passar do tempo, Barbaduque foi se transformando, sua figura se tornando asquerosa. Ele se tornou extremamente magro, os ossos do seu corpo pareciam muito maiores comparados aos de outra pessoa, deixando-o comprido e desengonçado, com a pele esticada. Seus olhos eram opacos e fundos, quase não piscavam. Suas orelhas se tornaram pontudas e seu nariz, achatado.

O Monstro sob a CatedralOnde histórias criam vida. Descubra agora