1859:
- Tire ele daqui! Tire ele daqui!
Soluços irromperam numa voz chorosa:
- Mamãe...
Tirou as mãos das saias da empregada, as quais antes havia se agarrado com tanta firmeza, e correu para a mãe que mantinha o corpo tão junto a parede que parecia querer se esconder ali.
Vendo o que o filho tentava fazer, ela recuou. O máximo que conseguiu. Encarou-o com os olhos arregalados de espanto e desespero e gritou novamente para a outra mulher:
- Tire ele daqui agora!
Ainda que temesse por sua senhora, ela não hesitou mais e apanhou o menino pelos pulsos, tentando ignorar seus gritos de protesto e levando-o para longe do quarto, para longe da mãe decidida a salvar a vida do filho a qualquer custo. Inclusive do seu próprio.
A força com que segurava os pequenos braços de Leland era tanta que chegavam a doer. Mas ela sabia que seria infinitamente pior se parasse para ser gentil. Desceram até o porão, embaixo de um alçapão no quarto da criança. Ali agarrou o menino com todo o ímpeto, seu corpo pequeno espremido contra o dele, ainda menor.
Ele ainda berrava, chamando pelo nome da mãe e esmurrando as paredes com seus punhos minúsculos.
- Leland fique quieto! - Virou-o pelos ombros, forçando-o a encará-la - Sua mãe está tentando te salvar.
- Não vou ficar sem ela! - Esbravejou como o pequeno lorde que era.
Passos. Passos pesados vindos de longe.
Ela tentou cobrir sua boca, seus ouvidos quando ouviram os passos se aproximando cada vez mais, tentou fecha-los quando ouviram com nitidez a porta do quarto de Lady Briar ser arrombada, e tentou fazer o mesmo quando a breve discussão começou.
Mas seus braços soltaram a criança, agarraram a si mesma e ela lentamente caiu no chão quando ambos ouviram um grito vindo do quarto, o grito de uma mulher silenciada para sempre.
E depois não ouviram mais nada.
***
Presente:
A fumaça obscurecia sua visão, como um tolo exasperado ele tentava afasta-la enquanto corria pelos corredores agora praticamente vazios de Sinclair procurando qualquer um que ainda pudesse estar em perigo, mas ela voltava cinza como uma névoa espessa.
Como isso acontecera? Como puderam deixar...
Um alívio momentâneo o invadiu quando conseguiu chegar até a rua e numa rápida inspeção viu que todos estavam a salvo.
Conseguira, conseguira salvar todos...
- Leland! - Madre Julia tomou-o em seus braços largos tão rápida e forte que por um instante lhe faltou o ar - Por Deus eu estava quase desmaiando de preocupação...
- Eu estou bem... Estou bem... - Se afastou com leveza, tentando recuperar o fôlego perdido na fuga.
- Onde elas estão?
A urgência na voz dela o fez se erguer de súbito.
- Quem?
- As noviças, você as encontrou? Elas não estão aqui.
O terror em sua face devia ter sido transparente, pois observou-o ser refletido na expressão de Julia.
***
Os berros de protesto da Madre ficaram para trás, desvanecidos numa nota sinistra de lamento agora que ele percorria sozinho novamente os corredores do edifício, tomados pela escuridão exceto onde as chamas ainda ardiam.
Sabia que ela o teria seguido se as outras freiras não deixassem, atendendo seu pedido de mantê-la a salvo. Não queria perder mais ninguém.
Onde elas podiam estar? Como não haviam encontrado a saída? Essas perguntas martelavam em sua mente, as únicas companheiras no silêncio sepulcral que se abatia sobre Sinclair.
Sinclair, sua pobre e amada Sinclair...
- Não, não, não, não!
O eco de suas palavras reverberaram, voltando como uma corrente de loucura quando havia enfim chegado ao quarto delas, porém não encontrara nada ali. Estava tudo intocado, exatamente como quando haviam chegado. Como se elas não tivessem sequer encostado em nada.
Iria descer de novo, procuraria por elas no jardim ou na vizinhança... Quando repentinamente sentiu aquele aroma. O mesmo aroma da manhã. Rosas. O cheiro de rosas.
Era um sinal, só podia ser. Sem alternativas, resolveu segui-lo, farejando como um cão. Não iria se perdoar caso alguma coisa acontecesse com aquelas jovens novatas.
Sinclair deveria curar, e não matar.
O aroma era doce, intenso como um caro perfume e estava ficando cada vez mais forte a medida que seguia para os andares mais altos, ainda mais silenciosos.
As chamas estavam diminuindo, o fogo não havia chegado ali ou já se apagara. Estava quase inebriado, completamente possuído por aquele aroma de um jardim de mil rosas que o levara até o último quarto do último andar do edifício. A porta estava fechada, não se lembrava daquele lugar. Devia ser um depósito antigo.
Abriu-a, entrou, e só encontrou chamas se erguendo sobre uma pilha gigantesca de livros velhos. Embrenhou -se em desespero, esperando encontrar qualquer coisa que fosse, mas era uma sala pequena, não tinha como elas estarem escondidas. No entanto o cheiro de rosas perdurava e... Como era possível? Ainda mais forte.
Virou-se. Não se lembrava de ter fechado a porta. Agarrou a maçaneta para abri-la... E o repentino e gélido terror inundou todo o seu ser ao descobrir que estava trancada.
Por reflexo se colocou a puxar o objeto diversas e incontáveis vezes, sua mente não conseguindo mais raciocinar com clareza.
Que pesadelo aquele dia havia se tornado, como queria acordar dele. Piscou os olhos, arranhou-se mas não adiantava. Não era um sonho.
- Socorro, socorro!
Não adiantava gritar, sabia que ninguém iria ouvi-lo naquela distância.
Chutou a porta, esperando ouvir ela se soltar e bater com um estrondo no chão, mas não conseguiu, é claro que não, seu corpo era pequeno demais pra isso.
O fogo aumentava, logo as chamas já chegavam ao teto e começaram se alastrar por suas vestes. Não sabia dizer se fora o fogo a consumir sua carne, ou a fumaça aliada ao perfume diabólico das rosas, mas logo perdeu os sentidos. Sua cabeça caindo no chão com força e todo o mundo que conhecia sendo invadido pelo brilho das chamas e a escuridão da inconsciência quando desmaiou e não ouviu mais nada.
![](https://img.wattpad.com/cover/372014545-288-k649714.jpg)