ᨒⅠⅠⅠ 章節ᨒ

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   Mais tarde naquele dia, tomei o caminho que levava da casa de chá até o portão da nossa propriedade. No meio do percurso, perto do jardim de pedras, parei para pegar um pouco de hortelã. A areia pálida ondulava sobre as pedras, que pareciam ilhas abandonadas cercadas de água. As três plantas aromáticas do canteiro, que ficavam mais perto do limite da propriedade, explodiam em direção ao céu límpido como se fossem labare das verdes. Coloquei umas folhas de hortela na boca e continuei andando em direção a um pequeno morro que ficava à sombra de um pinheiro, bem ao lado do portão, de onde podia ver a estrada que se expandia para além das árvores do nosso bosque. A hora mais quente do dia já havia passado e a roupa da cerimônia do chá tocava minha pele de forma agradável e fresca. Já as sandálias de sola dura machucavam meus pés cansados. Os braços também doíam.

   Meu pai se levantou após algumas parcas horas de sono, em meio à luz dourada e pálida, típica de uma noite branca que se transforma em manhã. Não era sempre que ele me acordava tão cedo nos dias de cerimônia, mas dessa vez não tivera piedade. Eu já sabia que era uma punição silenciosa por ter demorado demais na casa da Sanja no dia anterior. Meu pai me deu várias tarefas, uma após a outra, às vezes três de uma só vez. Quando minha mãe levantou para o café da manhã, eu já tinha limpado o jardim de pedras, carregado vários cantis de água, varrido o chão duas vezes, pendurado lampiões decorativos dentro e fora da casa de chá, colocado nossas roupas da cerimônia para arejar, lavado e secado xícaras e bules e arrumado tudo em bandejas de madeira, tirado o pó da pia de pedra do jardim e arrastado o banco da varanda três vezes, até que finalmente meu pai estivesse satisfeito com a posição.

   Foi com certo alívio, portanto, que andei até o portão para aguardar os convidados, enfim livre dos meus afazeres. Não tinha comido praticamente nada desde o café da manhã e mastiguei as folhas de hortelã para enganar a fome. Na luz preguiçosa do fim da tarde, mal conseguia manter os olhos abertos. O som suave dos sinos de vento do jardim acariciavam meus ouvidos. A estrada estava deserta, o céu parecia imenso lá em cima e, por todos os lados, eu pressentia a textura do mundo, o movimento ininterrupto da vida, em sístoles e diástoles.

   O vento crescia e arrefecia. Águas profundas se moviam no silêncio da terra. Sombras mudavam levemente de forma. Finalmente percebi uma movimentação na estrada e, pouco a pouco, pude distinguir duas pessoas em roupas azuis vindo em um helicarro dirigido por um motorista. Quando se aproximaram do bosque, toquei o sino de vento que ficava pendurado no pinheiro. Pouco depois, ouvi os três sinos da casa de chá e, assim, soube que meu pai estava pronto para receber os convidados.

   O helicarro parou perto do portão, à sombra de uma garagem de algas construída especialmente para abrigar os veiculos de convidados, e dois homens em uniformes militares do Novo Qian desceram. Reconheci o mais velho: Bolin era uma visita frequente que aparecia em intervalos de poucos meses. Vinha e pagava bem, em água e tros suprimentos. Meu pai gostava de Bolin porque ele conhe cia a etiqueta da cerimônia do chá e jamais exigia tratamento especial, apesar do status. Bolin também tinha familiaridade com os costumes locais, mesmo tendo nascido fora do vilarejo. Era um oficial de alto escalão, além de chefe militar do Novo Qian nas áreas ocupadas da União Escandinávia. Em seu paletó havia uma insignia prateada em formato de peixe.

   Eu não conhecia o outro convidado. Mas quando vi dois peixes prateados pregados no uniforme, percebi que deveria ser de um escalão ainda mais alto do que o de Bolin. Antes mesmo de ver seu rosto, escondido pelo capuz antimosquito, e julgando apenas por sua postura e por seus movimentos, achei que o desconhecido era mais jovem. Fiz uma reverência para ambos e aguardei até que tivessem me cumprimentado também. Então pegamos o caminho de pedras. Eu seguia na frente, em ritmo deliberadamente lento para dar aos dois convidados tempo suficiente para mergulhar no silêncio sem pressa da cerimônia.

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