ᨒⅠ 章節ᨒ

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   A água é o mais versátil de todos os elementos. Assim disse meu pai no dia em que me levou para o lugar que não existe. Embora tenha errado em muitas coisas, estava certo a respeito disso, pelo menos é no que ainda acredito. As águas mudam conforme a lua, abraçam a terra, não têm medo de morrer no fogo ou viver no ar. Entre na água de leve e sentirá um toque tão doce que quase se confunde com a pele. Mas choque-se contra ela e a água o quebrará em pedaços. Um dia, quando ainda existiam invernos no mundo invernos frios, invernos brancos, invernos de cujos abraços era preciso deslizar e fugir para se aquecer, dava para andar sobre a água cristalizada, chamada gelo. Já vi gelo, mas apenas na forma de cubos pequenos feitos pelo homem. A vida toda imaginei como seria andar sobre um mar congelado.

   A morte é amiga íntima da água. Não dá para separá-las, e também não é possível afastá-las das nossas vidas, porque representam, no sentido último, aquilo de que somos feitos: a versatilidade da água e a opressão da morte. A água não tem começo nem fim, e a morte tem ambos. A morte é o começo e o fim. Algumas vezes, ela viaja escondida na água, outras, a água afasta a morte, mas estão sempre juntas, no mundo e dentro de nós.

   Também isso aprendi com meu pai, embora tenha a impressão de que acabaria compreendendo sozinha. Pude escolher o meu começo.

   Talvez possa escolher o meu fim.

   O começo foi no dia em que meu pai me levou para o lugar que não existe.

   Isso aconteceu algumas semanas depois que prestei vestibular, compulsório para todos os jovens da minha idade. Embora tenha me saído bem, não havia a menor possibilidade de largar o posto de aprendiz do meu pai para seguir os estudos na cidade. Foi uma escolha que fui obrigada a fazer e, talvez por isso, não tenha sido exatamente uma escolha. Era o que fazia meus pais felizes, e não me fazia infeliz... e isso era o mais importante na época.

   Estávamos no quintal, atrás da casa de chá, e eu ajudava meu pai a pendurar os cantis para secar. Ainda tinha alguns na mão, mas a maioria jazia de ponta-cabeça, presa por grampos de metal. A luz do sol atravessava as superficies translúcidas formando um véu. E pequenas gotas desciam dos cantis em filetes até, finalmente, caírem na grama.

   ─ Um mestre do chá tem uma ligação especial com a água e com a morte─ disse meu pai, enquanto examinava uma das películas à procura de rachaduras.─ Chá não é chá sem a água, e sem o chá um mestre do chá não é mestre. Ele devota sua vida a servir os outros. E só comparece a uma cerimônia do chá como convidado uma vez na vida, quando sente que a morte se aproxima. Então, ordena que seu sucessor prepare o último ritual e, depois de ter se servido, espera sozinho na casa de chá até que a morte pouse a mão pesada em seu coração.

   Meu pai atirou um cantil na grama, onde outros já se amontoavam. Remendar cantis nem sempre funcionava, mas eles custavam caro, como qualquer coisa feita de plástico durável, e, portanto, valia tentar.

   ─ Alguém já se enganou alguma vez? ─ perguntei.─ Alguém já pensou que a morte estava chegando quando não era a hora?

   ─ Não na nossa família. Ouvi falar de um mestre do passado que ordenou ao filho que preparasse o ritual, se deitou no chão da casa de chá e, dois dias depois, voltou para a família. Os empregados acharam que fosse um fantasma e um deles teve um infarto. O mestre tinha pressentido a morte do empregado. O empregado foi cremado e o mestre ainda viveu por vinte anos. Mas não acontece com frequência.

   Dei um tapa numa mutuca pousada no meu braço. O inseto se esquivou com um zunido estridente. A fita que prendia meu capuz antimosquito coçava e me apertava, mas eu sabia que se tirasse a proteção atrairia muito mais insetos.

~Memória Da Água~Onde histórias criam vida. Descubra agora