RAIN

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 1969

Lá fora já estava tudo escuro há horas. A rua lentamente havia se aquietado, as pessoas se dissipado e a lua tomava um ínfimo espaço na vista da janela da sala de descanso do estúdio. O resto da imagem emoldurada era um azul profundo com algumas poucas gotas brilhantes, cobertas pelo reflexo que a luz de dentro fazia no vidro.

Depois de diversas tentativas frustradas, eles ainda não conseguiam terminar a gravação de "Two of Us". Quando não pediam uma pausa, talvez ocorresse uma discussão, ou alguém desafinasse, saísse do ritmo, esquecesse a letra. Eram sempre mil problemas e nenhuma solução.

Paul não conseguia conter sua irritação quando acontecia qualquer mínimo atraso ou desentendimento, suas sobrancelhas e seus lábios diziam tudo o que ele poupasse palavras para expressar.

Richard não sabia o que estava fazendo ali, ele cogitava apenas largar tudo e sair do estúdio sem aviso prévio, já estava farto de tudo, dos rostos cheios de frustração e do peso perceptível do que não era dito.

George se esforçava para engolir tudo o que tentava vir à superfície, qualquer argumento, reclamação ou descontentamento que pudesse ser notado.

John coçava o rosto e evitava olhar nos olhos de qualquer um por mais do que alguns instantes, receoso de que algo dentro dele poderia explodir e arruinar toda a mínima paciência que estava conseguindo reunir.

Ouviu-se um rangido e o som de faíscas. Afastado do resto, ao pé da janela, George acendia um cigarro repousado por entre dois dedos. Quando a ponta acendeu e iluminou levemente o seu próprio rosto, ele puxou o ar e soprou algumas vezes para garantir que continuasse queimando.

A fumaça enevoava suas feições e logo após se dissipava, mantendo-se no ciclo de ir e voltar. Tragava profundamente e expirava até expulsar todo o ar dos pulmões, como se fosse um exercício de respiração. Ele alternava entre fumar, observar a rua vazia e tomar um gole de água.

Também ouviam alguém cantarolar a música repetidamente, revisando a melodia e tentando descobrir onde estavam errando e o que poderia ser feito para que finalizassem de uma vez por todas.

Os Beatles já não eram o que um dia haviam sido, isso era fato. Eles já não eram parceiros da mesma forma, já não gargalhavam durante as músicas, não faziam caretas nos videoclipes e nem riam das piadas uns dos outros em entrevistas. Alguns deles se perguntavam todos os dias como e quando tudo tinha virado de cabeça para baixo.

Paul tinha uma resposta para isso dentro de si: não é que eles um dia acordaram com o pé esquerdo e começaram os desentendimentos — nem que fosse culpa de um alguém específico —, havia sido um processo lento e gradual, desde o início de suas amizades e carreiras até o presente momento. Chega uma hora em que você não aguenta nem a si mesmo mais, e esse era o ponto em que ele sentia que estava chegando.

— Quem comprou essa cerveja horrorosa? — Paul sentia o amargor tomar conta de sua boca, e não era do jeito bom. Cuspiu logo tudo na pia de serviço da salinha. Olhou em volta para os outros, esperando por uma explicação, mas nenhum se pronunciou. Parou o olhar em um específico. — Ah, deixe eu adivinhar... Foi você, não foi?

John levantou uma sobrancelha e piscou os olhos lentamente.

— Perdão? É comigo que você está falando? — Ele questionou, fazendo com que Paul arqueasse, não só uma mas, as duas sobrancelhas e cruzasse os braços e se endireitasse, como que tentando parecer maior.

— Com quem mais estaria? Você é o único entre todos nós que é desatento e despreocupado o suficiente pra comprar uma cerveja que não sabe se todos vão gostar. Às vezes parece que você faz esse tipo de coisa de propósito... Ou melhor, parando pra pensar, tenho quase certeza que faz, sim. Você sempre foi uma grande criança em corpo de adulto. Tanto que arrumou a mulher perfeita pra você, que lhe põe no colo, mima e depois coloca de castigo quando você vai contra o que ela manda.

RAIN - McLennonOnde histórias criam vida. Descubra agora