Semelhanças de uma noite chuvosa

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“Se você dançar, eu dançarei
E se você não dançar, eu dançarei mesmo assim
Dê uma chance à paz
Deixe que seu medo desapareça

Eu estou de olho em você”
Say Yes To Heaven, Lana Del Rey


Jang Yuna


O homem vinha em nossa direção à passos lentos, o suficiente para fazer o meu coração saltitar no peito e o ar fugir quase que completamente dos meus pulmões. Sem desviar o olhar felino do meu, o vi discretamente guardar a dita cuja caderneta da vergonha no bolso do paletó.
Aquele seria o meu fim iminente, eu tinha certeza, mas se Deus tivesse um pouco de pena com sua filha, isso pode ser o menos humilhante possível.
Soltei Taehyung no mesmo instante, e o Kim me olhou intrigado com minha reação repentina de olhar estático, foi quando ele se virou dando de cara com o estranho que já havia nos alcançado.
– Hyung! – Eles se abraçaram entre sorrisos amistosos como se fossem dois velhos amigos.
"Como assim eles se conhecem? Desde quando? Taehyung é realmente um cara popular!”, pensei comigo mesma.
O cenho franzido e a boca entreaberta de surpresa estavam entregando o quanto aquilo me pegou desprevenida, o que não passou batido pelos olhos predadores do desconhecido, seu sorriso singelo se alargou mais.
Ele parecia achar o meu estado deveras cômico, mas de engraçado não tinha nada, eu estou enfartando aqui caramba!
Procurei sentar na cadeira mais próxima, o nervosismo estava causando tremedeira nas minhas pernas e estava ficando difícil ficar de pé. As mãos juntas no colo fazendo pressão para baixo enquanto os dedos se enrolavam uns nos outros e se apertavam, já ganhando uma coloração branca nos nós, chamando minha atenção. Eu precisava desviar o olhar dele antes que desmaiasse.
Taehyung e o ruivo se separaram depois de um tempo, dando tapinhas nos ombros um do outro.
– Você não é o tipo de cara que frequenta cafés como esse Hobe Hyung, o que te fez sair da toca e vir aqui? – Taehyung estava intrigado com a aparição do outro tanto quanto eu, que passei apenas a prestar atenção na conversa, meio alheia à eles.
– Estava passando aqui em frente quando vi a promoção de drinks, e você sabe que eu não resisto a uma boa cerveja no final do expediente – o tal Hobe riu meio anasalado e Taehyung o acompanhou, sua voz era um pouco menos grave que a do Kim, o que combinava com seu perfil despojado.
– O mundo é dos muquiranas mesmo! – Tae disse levando um tapa na nuca do seu Hyung em seguida, que apenas intensificou sua risada enquanto ele se virava para mim – Ah, esqueci de te apresentar, essa é a Yuna, minha amiga desde que me mudei para cá, ela trabalha aqui inclusive! – O entusiasmo era algo genuíno no Kim, em qualquer situação ele era amistoso e cativante mas não era hora para isso!
Eu só queria ser uma ema de desenho animado e enfiar minha cabeça debaixo da terra.
A atenção do ruivo se voltou para mim de novo, o sorriso reconfortante causou um solavanco no meu peito, o que tentei disfarçar com um falso soluço e o maldito riu baixinho do meu estado.
– Prazer, Jung Hoseok – ele não se incitou em me tocar, apenas acenando para mim de onde estava mesmo. Sorrir sem mostrar os dentes foi o que meu corpo conseguiu processar educadamente em resposta.
Obrigada Deus, eu nunca duvidei da sua bondade.
– Whisky ou Tequila? – Tae perguntou para Hoseok já chamando o barman.
Caramba, agora que lembrei que meu horário está acabando e ainda preciso verificar o estoque!
– Whisky, por favor – o ruivo aproveitou a distração do amigo para sacar a caderneta do paletó e a estender para mim por baixo da bancada, sem me olhar dessa vez, e sem jeito algum, me fiz cumplice do momento, os dedos tremendo e hesitantes tocaram o caderno o trazendo para minha posse, rapidamente o coloquei no bolso do avental que uso.
– Obrigada, obrigada – disse baixinho para ele que sorriu ladino e aquela era a minha oportunidade de sair voando dali.
Saí de mansinho, bem na pontinha dos pés, logo me misturando as pessoas do estabelecimento e indo direto para a área de estoque do Coffee Center.
A porta se fecha atrás de mim e escoro o corpo contra ela, aos poucos vou deslizando pela madeira até sentar no chão, abraçada ao próprio corpo e ofegante, a cabeça borbulhando de pensamentos, a vista turva e a ansiedade no talo.
“Já passou, você não precisar mais ver ele, calma Yuna”, essa frase se repetia na minha mente enquanto eu tentava apaziguar o meu estado, congelada na mesma posição, contra a madeira mórbida da porta.
Ele havia descoberto onde eu trabalhava, seria coincidência demais ele sair para beber e dar de cara comigo, ainda mais portando o meu diarinho.
“Então ele veio apenas me devolver o caderno?”, os pensamentos oscilando a intensidade a fim de não me matar de uma vez, apenas me torturar ao máximo.
Não tenho noção de quanto tempo fiquei presa naquela mesma posição mas quando finalmente tomei coragem de levantar, notei que por ter ficado tanto tempo parada, meus músculos estavam dando câimbra, e mesmo cambaleando um pouco passei a ocupar a mente com a organização dos produtos nas prateleiras e algumas planilhas de controle de estoque, agora com o coração mais estável e respirando normalmente.

...

Parecia ser tarde da noite quando pus os pés fora do café. Nem lembrei da existência do celular, apesar de ter ciência que ele estava jogado entre a bagunça de coisas da minha mini mochila. Desde a crise de mais cedo, optei por me dedicar ao que precisava fazer e meu hiper foco me auxiliou bastante quanto a isso, era a maneira que eu encontrava de resolver os meus problemas, fugindo deles.
Mais um dia de trabalho concluído e agora, mais do que nunca, só preciso chegar em casa, tomar uma ducha bem relaxante, e nossa só de imaginar a agua quentinha levando toda a bagunça do dia de hoje junto com o meu estresse direto para o ralo, aquela fumacinha dançando no ar eu já me sinto muito melhor.
Sinto gotas fartas de água fria pingando nos meus ombros e logo uma chuva grossa começa a cair.
Não, não, não! Começo a vasculhar a mochila mas lembro que esqueci o guarda-chuva em cima da mesa, droga!
Eu já não estava com forças nem para relutar, então só aceitei o banho de chuva gelada. Segui o trajeto que costumo fazer até o ponto de ônibus, sem pressa alguma, a roupa já estava ensopada e grudando no corpo mas apenas ignorei, os ladrilhos da calçada me eram mais interessantes, o formato de um se encaixa em mais quatro iguais a ele e uma nostalgia invade o meu peito.
Em outros tempos, num passado não muito distante, eu era mais feliz. Ainda vivia com os meus pais, ia a escola todos os dias e trabalhava meio período ajudando minha mãe na confeitaria, nosso negócio de família. Eu adorava, passava as tardes entre as massas e glacês coloridos, o cheirinho doce de bolo saindo do forno é o meu preferido. Minha especialidade, e confesso que parte preferida, eram os docinhos. Brigadeiro, beijinho, bombom, dindin, trufa, merengue e por aí vai. Difícil era tirar a manteiga dos dedos mas eu nem me importava tanto assim, mesmo que às vezes fosse estabanada e acabasse esbarrando em uma tigela de vidro e a quebrando, e levando um bom puxão de orelha da Omma, era o meu momento do dia mais caloroso.
Até a fornalha de gerações da Omma desabar, ela desanimar com a tragédia, os negócios começarem a ir mal por conta de fofocas locais sobre a higienização da cozinha e decretarmos falência.
Meu coração pareceu ganhar o tamanho de uma ervilha, o peito doeu com a lembrança triste e lágrimas quentes escorreram por minhas bochechas, se mesclando as gotas de chuva e eu me permiti sentir tudo o que estava guardando, ali no meio da calçada mesmo.
As pessoas passavam por mim mais preocupadas em sair da chuva do que com uma estranha chorando feito criança, e a vida moderna era isso: trabalhar e estudar para ser alguém na vida enquanto tenta parecer feliz 24/24 do seu tempo, isso sem contar que não importa o quanto você se esforce para conseguir algo nunca é o suficiente para te manter satisfeito, o que faz com que você se torne escravo das próprias ambições. Você não deve dar preocupação aos pais, muito menos desapontá-los porque isso se trata de uma faca de dois gumes, e você irá se cortar mais nessa história do que todo mundo. Mas todo mundo ao seu redor sempre está ocupado demais até ter empatia com você e com pressa demais sequer para olhar para você, e você passa a ser apenas mais uma peça do jogo da sobrevivência na sociedade capitalista.
Tudo isso me mata, ter ansiedade me mata, pensar demais me mata.
O pior de tudo é que só tenho 20 anos. Pouca idade e muita exigência.
O choro ganhou intensidade e eu soluçava sem segurar nada, farta de carregar a carapuça de moça sorridente. Mau sabem eles que todo grande sorriso carrega um grande peso.
A chuva não caia mais sobre mim pois um guarda-chuva amarelo passou a me proteger junto a um corpo alto que ficou à minha frente.
– Assim você vai pegar um resfriado – eu estava tão triste que não me importei que ele visse o quão vulnerável estava.
Eu não queria responder, não queria falar, só chorar e chorar.
O olhar preocupado do ruivo ganhou a minha atenção, pelo que pude enxergar com a vista embaçada de lágrimas, e gentilmente ele me abraçou pelos ombros, com todo o respeito do mundo não só com o meu corpo mas com a minha tão fragilizada alma. As lágrimas manchando o seu ombro coberto pela camisa social branca não o incomodaram, e ele era tão quentinho que me apoiei ali, no reconforto dos seus braços. Ele se demorou em uma carícia suave nos meus cabelos com suas mãos grandes e macias, empático de alguma forma a minha dor, de uma maneira que nunca imaginei que pudesse existir.
A chuva se tornou chuvisco. Hoseok me guiava silenciosamente pelos ombros pelas ruas que eu conhecia, contudo estava dispersa demais para me atentar melhor por onde eu andava, me dando conta apenas quando meus pés subiram o batente da porta de meu apartamento, e nossa, havíamos andado tanto assim?
Hobe parecia ter cautela em como se portar comigo, usando de uma delicadeza de cuidados semelhantes à quando acariciamos uma rosa branca, e mesmo exaurida, eu precisava agradecê-lo por sua empatia e solicitude tão admirável comigo.
Fiquei na ponta dos pés para depositar um beijo amável em sua bochecha esquerda, recebendo seu costumeiro sorriso de volta.
Não precisava de palavras, todos os gestos e ações falam mais do que milhares de palavras.
Antes que eu pudesse me virar para entrar, ele falou:
– Nem tudo é o fim Yuna, talvez seja apenas o que não te contaram sobre o começo.
– Obrigada Sorriso Singelo!

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⏰ Última atualização: Jul 10 ⏰

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