Silêncio

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Às vezes, quando fico nervosa, minha cabeça treme. Meu corpo até sabe lidar bem com as coisas, mas minha cabeça simplesmente não consegue digerir uma situação e começa a tremer. Naquele momento, minha cabeça tremia tanto que eu tive certeza que uma pessoa a 500 metros de mim poderia perceber sem esforço algum.

Isso porque assim que me dei conta de meu terrível destino, o meu nome foi chamado na sala do editor.

Ainda com a cabeça tremendo, caminhei a passos lentos e vacilantes até a sala onde havia sido chamada. Só quando cheguei na porta realmente acordei para a situação, meu cérebro captou os acontecimentos e consegui puxar o ar com força, antes de abrir a porta, pedir licença, e entrar.

Na sala agora estava apenas um dos editores, o que geralmente me passava as pautas, lançamentos e tudo que eu teria que acompanhar naquela semana. Dessa vez eu sabia que não era pra isso que ele me chamava, e isso me assustava. Me assustava porque eu tinha contas a pagar, me assustava porque eu tinha que me sustentar, porque eu tinha que provar para os meus pais que eu não havia fracassado e que podia cuidar de mim, e me assustava principalmente porque com a minha demissão, eu não fazia ideia de que passo viria a seguir.

— Sente-se Alanis…— a voz fina me irritava em situações normais, mas no momento a mensagem que ela traria vinha com mais potencial para me causar sentimentos negativos do que a sua forma. Me sentei tentando demonstrar o máximo de calma que eu conseguia, e surpreendentemente consegui não transparecer toda a minha ansiedade. — Eu vou ser bem direto com você, tudo bem? — Fernando agora me fitava esperando uma resposta. Os olhos azuis me olhavam com uma compaixão desnecessária. Eu odiava quando ele me tratava como uma criança. Passei mais tempo do que deveria nesse pensamento, e depois de um período de silêncio consegui assentir com a cabeça. — Eu realmente admiro muito o seu trabalho, não trabalharia com você se fosse o contrário. Mas acho que precisamos alinhar algumas coisas, entende? — Meu cérebro assimilou todas as informações muito rapidamente; ele não iria me demitir, não se eu concordasse com os termos que ele me daria. O alívio se misturou com irritação pelo tom que ele havia usado comigo pela segunda vez, mas novamente apenas assenti. — Ok, então vamos começar pelo que temos e que é fato: seus números caíram. E não foi qualquer quedinha, caíram realmente muito. — O meu rosto não conseguiu deixar de transparecer a frustração, por mais que eu já soubesse de tudo aquilo. — Então eu fui atrás de saber o que tinha feito uma das minhas maiores redatoras ter seu desempenho como vítima de uma queda tão abrupta. — Ele jogou quatro papéis na minha frente: 4 resumos de desempenho dos meus últimos posts no site, juntos com um pedaço destacado das minhas próprias palavras.

“Uma prova concisa de que a representatividade pode ser forte e simples...”

“Com tanto ativismo da comunidade LGBTQIA+ é ultrajante que a sua primeira letra, as lésbicas, sejam tão pouco representadas de maneira saudável e leve dentro do audiovisual...”

Não precisei terminar de ler. Eu já sabia o que ele queria dizer. O que ele queria que eu mudasse.

— Então você quer que eu deixe de abordar temas importantes. — Não foi uma pergunta. Eu concluí de forma rápida e talvez minhas palavras tenham saído de forma automática, e com um tom mais arrogante do que gostaria de ter usado. Mas não me arrependi.

— Não, meu bem, eu só quero que você entenda que não é isso que o público quer ler. O público quer saber se o conteúdo é bom ou não...

— O meu público, Fernando, quer saber mais se o conteúdo é bom ou ruim, eles querem o que faz esse conteúdo ser bom e o que faz ele ser ruim. São elementos de narrativa, eu não posso simplesmente ignorar!

— Sim senhorita, mas o seu público também tem feito nossos lucros caírem de maneira absurda.

— E você está dizendo que a culpa dos lucros terem caído é de um comentário meu sobre um filme idiota e não porque ninguém mais hoje em dia paga por um conteúdo que pode ser encontrado tão facilmente de forma gratuita?  Você acha que em um país onde todo dia milhões de pessoas passam fome, as pessoas vão continuar comprando revistas com a mesma frequência? — Percebi que estava me exaltando e me calei imediatamente. O que eu menos precisava era levar uma demissão por justa causa.

— Eu entendo perfeitamente a sua revolta, mas eu apenas estou trazendo os fatos, te passando a minha visão. Se você não quiser aceitar as mudanças que vou impor a decisão é sua, você pode sair daqui e pegar suas coisas. — Ele claramente estava me dando uma opção, e eu não podia me dar o luxo de tomar a decisão errada.

— E que mudanças são essas? — Cruzei os braços um pouco mais calma e disposta a contornar a situação.

— São só duas coisas, não se preocupe. — Eu estava preocupada — Primeiramente, as críticas e pautas que envolveram temas que você pode criar polêmicas em cima serão selecionadas para outras pessoas da equipe. A segunda coisa que vou te pedir, é obviamente que não traga esses assuntos à tona. — Abri a boca para protestar, mas não protestei. Não podia ser tão ruim assim escrever as coisas sem nenhum senso de responsabilidade de temas sociais, ou podia?

— Tudo bem, eu acho que posso conviver com isso… — Naquele momento eu só não podia conviver com o desemprego. — É só isso?

— No momento sim. Se for necessário conversamos depois. — A conversa se encerrou nesse instante. Levantei da cadeira onde estava sentada e saí da sala sem olhar para trás. O ar quente da área de redação fez com que eu recobrasse meus sentidos. Eu ainda tremia, mas de um nervosismo diferente do que eu havia sentido mais cedo. Era raiva, frustração. Acima de tudo não estava brava com o editor ou com ninguém a não ser comigo mesma. Eu me sentia frustrada porque estava sendo obrigada a deixar os meus princípios de lado para me manter empregada, e isso não me parecia nada justo.

Desliguei o meu “modo automático” e percebi que não estava respirando. Respirei fundo e olhei ao redor. Todas as pessoas presentes olhavam para mim, algumas discretamente, outras não faziam a mínima questão de disfarçar. Diferente de todas as pessoas que já haviam saído daquela sala hoje, eu me dirigi ao meu lugar e liguei o meu computador. Beatriz ainda se encontrava ao lado de minha mesa, sentada no puff. Ela me olhava com confusão e compaixão, e eu precisei mais uma vez recobrar o ar para não chorar.

— Não, eu não fui demitida, relaxa.

Naquele dia eu voltei pra casa um pouco mais tarde. Talvez duas ou três horas depois do horário que deveria. Não foi uma decisão livre e espontânea, mas também não fui obrigada. Fui orientada a revisar os meus próximos textos agendados para publicação e ver se estavam dentro das novas diretrizes.
Já eram mais de 10 horas da noite quando fechei o notebook e suspirei aliviada pela revisão do último texto. Contando os 4 anos de faculdade mais as duas últimas semanas de trabalho, aquela foi a única vez em que senti que o trabalho era um peso que estava carregando.
Fechei as últimas janelas abertas — eu era a última pessoa a ir embora naquele dia — e espiei o relógio. 22:22. Como uma mania, superstição ou crença, fechei os olhos e fiz um desejo com todas as minhas forças. O meu desejo era simples e subjetivo, e eu senti que aquele era meu último desejo, minha última chance — tanto que nos próximos anos, nunca mais desejei nada — , e desejei com tanta força que senti a pressão subindo pelos meus pulsos. Eu só desejei ser feliz.

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⏰ Última atualização: Jul 12 ⏰

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