Termostato

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Era um péssimo dia para se estar viva. Faziam apenas duas semanas desde que eu havia sido contratada para escrever no editorial de cinema da Revista Espaço; nada mais nada menos do que a maior — e uma das únicas que ainda mantiveram circulação — revista sobre entretenimento do estado de São Paulo. Fazia um calor quase histórico, e o escritório lotado implorava para que a temperatura do ar-condicionado fosse abaixada. Infelizmente, no momento ali haviam algumas preocupações mais sérias do que o clima do ambiente. Que preocupações eram essas? Isso era um mistério que eu ainda iria descobrir.

Os editores-chefes e todos os outros com cargo acima estavam desde o começo do dia subindo e descendo as escadas energicamente, andando de um lado para o outro do andar e fiscalizando tudo o que estava sendo produzido. A situação começou a ficar realmente preocupante exatamente às 11:27, quando um redator de música foi chamado para a sala do editor-chefe de música. Pouco mais de 8 minutos depois, eu pude o ver saindo com a cara vermelha. Ele foi para sua mesa, jogou uns 3 objetos que eu não identifiquei dentro da caixa de arquivo que estava vazia, e saiu do prédio, bufando e com os olhos marejados. Já eram 14:43, e mais 3 redatores e 1 revisor tinham passado pela mesma situação de Erick — que eu descobri ser o nome do redator de música de mais cedo — fora outros redatores que foram chamados, mas saíram da sala em silêncio, e permaneciam em suas mesas no mais completo silêncio. Ninguém ousou perguntar pra nenhum deles o que havia acontecido.

Mesmo estando um calor infernal, ninguém mais reclamava disso. O suor na testa de metade de nós agora já não era mais culpa da temperatura, mas da tensão que estava sendo criada e se tornava a cada segundo mais palpável.

— Lala… — a dona da voz que já era mais do que familiar pra mim sussurrou se aproximando cautelosamente e colocou uma lata de Coca-Cola na minha mesa. Beatriz era a única pessoa naquele lugar a quem eu realmente considerava uma amiga. Isso porque já nos conhecíamos desde a faculdade. Beatriz lidava comigo a mais tempo do que a maior parte das pessoas conseguiria lidar, e sabia como esse tipo de situação me deixava ansiosa, nervosa e aflita. Considerando meu longo histórico psiquiátrico, ela fazia todo o trabalho de redução de danos, seja me trazendo comida para evitar que eu entrasse em colapso, ou me trazendo a sopa pra me recuperar do colapso.

— Be! Obrigada, eu precisava mesmo molhar a garganta... — eu estava tão imersa na situação que não fiz o meu horário de almoço. Pra ser sincera, não havia nem mesmo levantado da cadeira desde o momento em que havia chegado pela manhã. Abri e tomei um gole da bebida, foi quando reparei que meus músculos estavam tensionados e minha garganta a qualquer momento iria anunciar bandeira branca e me abandonar.

Beatriz ainda estava do meu lado, sentada no puff que guardava perto de mim e que vinha sentar diversas vezes ao dia para reclamar de algo ou me contar alguma nova descoberta (em outros termos, fofoca). Ela também parecia estar muito preocupada; a pele negra parecia mais pálida do que o normal, as tranças que geralmente caíam pelos ombros livres agora estavam presas em um rabo de cavalo feito às pressas, e os olhos que geralmente traziam um olhar de tranquilidade pareciam buscar algo na tela do celular. Eu mal tive tempo para concluir um raciocínio quando Beatriz levantou do puff em um pulo e chegou mais perto de mim, me mostrando a tela do celular.

— Eu sabia! Eu sabia! Olha só, a IPEC liberou hoje esses dados... — Beatriz me mostrava um gráfico no celular, e gesticulava animada com a outra mão. — O número de vendas da revista do último mês, o número de acessos no site e o número de novas assinaturas pagas dos últimos quinze dias é inferior ao que tivemos no nosso pior mês, em 2019.

— Isso significa que agora este é o nosso pior mês... — Conclui o óbvio.

— Sim, mas não é só isso... — é claro que não era — Eu vi isso hoje de manhã, logo depois da saída dramática do Erick. Depois foram o Vinicius, a Tabata, a Agnes e Lucca. Eu to desde então tentando achar um padrão, algo que seja comum entre os 5. E adivinha? Isso mesmo, eu não achei nada! Pelo menos não tinha achado até agora... — Beatriz me empurrou sutilmente de onde eu estava, e começou a vasculhar algo no computador. Primeiro ela abriu o meu Wordpress, abriu a ferramenta de anunciante e mais uns 2 sites que eu raramente usava. Quando ela começou a digitar códigos foi que eu desisti de entender onde ela queria chegar, e apenas aguardei o término da conclusão do seu raciocínio. Ela teclou o enter uma última vez, dramaticamente. — Se eu não estou errada, e raramente eu estou, esses são os posts do site que renderam menos redirecionamentos nesse mês. — Eu observava atenta a tela do computador, mas meu olhar confuso denunciou que eu não entendera de fato o que estava acontecendo, e minha amiga desatou em sua explicação novamente. — Tem um fator de demanda que nós não usamos para ver as métricas geralmente, mas eu sei que nossos superiores usam porque já ouvi eles conversando sobre uma vez. Basicamente, o que essa métrica aponta é; quantas pessoas conheceram o site através de um post seu e com essa única leitura fizeram a assinatura paga. Então mesmo que nós não usemos essa métrica, ela é muito importante para nossos superiores continuarem controlando quantos posts nos dão, e até...

— Até quem vai continuar e quem vai ser demitido... — mais uma conclusão óbvia saindo da minha boca. Pra ser sincera, eu ainda estava em choque com a habilidade de Beatriz em chegar a essa conclusão. Não que eu duvidasse da capacidade intelectual dele, até porque já tinha a visto fazer coisas similares, mas porque eu nunca teria aquela capacidade. — E esses posts são de quem?

— É o que vamos descobrir! — Beatriz apenas clicou com o botão direito do mouse e abriu cada um dos 4 primeiros posts da lista, confirmando a teoria que ela havia acabado de explicar. O primeiro post pertencia a Erick, o segundo pertencia a Vinicius, o terceiro a Tabata, e o último à Lucca. Todos haviam sido revisados por Agnes.

— Beatriz, você é um gênio! — eu disse animada e orgulhosa. Minha amiga sorriu orgulhosa de seu trabalho e aparentemente tão surpresa quanto eu. Quase ao mesmo tempo, eu e ela percebemos que estávamos comemorando a descoberta, mas que na verdade não havia nenhum motivo de comemoração. O sorriso de nossos rostos se desmanchou rapidamente e voltamos a sussurrar — Se eles realmente estão demitindo quem se saiu mal nessa métrica, nós conseguimos saber quem é o próximo, não?

— Receio que sim. — Ela voltou novamente para o computador e abriu mais um post da lista. Este parecia ser o último com números muito abaixo dos demais, e um alívio egoísta correu pelo meu corpo, porém não por muito... Era uma crítica da série A Maldição da Residência Hill, havia sido lançada uma semana atrás, e eu não precisei abrir para saber quem havia escrito. O post era meu...

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