Finalmente chegou o tão esperado sábado, trazendo consigo uma onda de atividades recreativas que preenchiam a área externa da clínica. Para mim, isso carregava uma certa dose de apreensão, embora fosse o ápice de diversão para a maioria. O aguardado “Varal das Artes” se estendia, transformando-se em uma exposição improvisada de expressões criativas de pacientes talentosos. Desenhos, pinturas e até mesmo fotografias capturadas por uma modesta câmera digital adornavam os papéis de ofício, penduradas como roupas recém-lavadas ao sol. Ali, uma miscelânea de talentos, cada obra contando sua própria história.
O olhar atento de Benício, absorto como um apreciador de obras-primas, vagava entre as criações, revelando emoções que talvez apenas ele pudesse decifrar. Um sorriso, uma pausa contemplativa, uma rápida digitação em seu dispositivo, e o ciclo se repetia, como uma dança íntima entre arte e admirador.
A melodia se entrelaçava com as cores quando a “Roda da Canção” se formava, um sábio mestre musical sentado no chão, como uma âncora na maré das vozes entusiasmadas. Uma canção escolhida acendia a harmonia compartilhada, corações e vozes unidos em um coro alegre. A mesa retangular, um altar de deleites variados, abrigava um banquete de lanches apetitosos, sucos e refrigerantes, todos abraçados pela sombra benevolente das árvores, como uma mãe protetora cuidando de seus filhos em uma tarde de verão. Naquele sábado, um cardápio de entretenimentos se desenrolava diante de todos, cada oferta uma promessa de risos, sorrisos e momentos inesquecíveis.
Na quietude das minhas escolhas, mantive-me como um espectador solitário, imerso em uma rotina meticulosamente traçada, como se fosse o maestro de um espetáculo oculto. Assentei-me com serenidade na sombra acolhedora que o ambiente me oferecia, como se fosse um espectro invisível à espreita, pronto para desvendar os mistérios que a vida cotidiana reservava.
Ao observar o cenário à minha frente, deparei-me com Benício, absorto pelo mundo virtual. Seus dedos ágeis moviam-se rapidamente sobre a tela brilhante do dispositivo eletrônico, com uma sequência de toques e gestos precisos. Parecia que ele controlava cada interação digital com grande habilidade.
Com um gesto final, que indicava uma destreza singular, o celular encontrou o abrigo do bolso da bermuda caqui de sarja, como um artefato valioso guardado em um relicário moderno. A varanda, que se transformara em meu posto de vigília privilegiado, estendia-se diante do meu olhar como uma plataforma de observação erudita, oferecendo uma visão panorâmica de uma exposição de almas que pareciam dançar em um balé desordenado e cativante.
No silêncio da varanda, as palavras se tornaram supérfluas. Deixei-me levar por uma troca de olhares e sorrisos cúmplices, como personagens de um romance breve, sem a necessidade de diálogos. As emoções e pensamentos pareciam fluir de forma sutil, como segredos partilhados entre amigos íntimos.
E assim, continuei a ser o espectador fiel, não apenas da vida exterior que se desdobrava diante de mim, mas também do intrincado teatro humano que se desenrolava naquela varanda, onde eu e Benício, cada um à sua maneira, vivíamos uma existência conectada.
Benício, de olhos diferentes, um visionário da sinestesia, aproximou-se com a graça de quem conhece as nuances da vida. Sua voz, suave como o sussurro do vento, rompeu meu estado de contemplação:
― Oi, Be?
― Oi, Benício.
― Você gosta do cheiro das cores¹?
― O cheiro das cores? ― disse, um tanto confuso. ― Acho que nunca pensei nisso.
― É interessante. ― sorriu. ― Para mim, cores têm cheiros distintos. Quer aprender mais sobre isso?
Um diálogo nasceu, uma troca de palavras que desvendou o mistério da singularidade que o envolvia.
― Posso me sentar com você? Não gosto de muito barulho. Minha audição é sensível, sons altos se tornam quase insuportáveis.
― Claro! ― falei, afastando-me um pouco para dar espaço a ele.
Uma janela para um mundo sensorialmente rico se abriu, enquanto ele explicava sua relação única com o ambiente sonoro. Cores e sons dançavam juntos em seu universo particular, uma sinfonia multifacetada de percepções entrelaçadas.
― Isso é fascinante! ― disse, genuinamente encantado.
Risos surgiram quando suas palavras encontraram minha perplexidade. A simplicidade com que ele explicou seu mundo era tocante, um vislumbre da riqueza que existe além do que os olhos comuns podem ver. Ele se acomodou ao meu lado, os olhos de pupilas diferentes, fixos em um pequeno besouro que traçava seu caminho pela grama verde. Aquilo parecia uma poesia.
Com um espirro alérgico repentino, gesto que parecia quase casual, ele ergueu-se da posição em que estava, como se obedecesse a um chamado invisível. Seus passos determinados o levaram com uma cadência quase coreografada até onde os dentes-de-leão, com sua exuberância simples, cresciam em um campo. Sua presença era marcante, parecendo comandar a cena com autoridade silenciosa. Somente aqueles que compreendiam os segredos da natureza podiam perceber sua verdadeira influência.
Diante dessa cena, percebi que cada movimento seu carregava consigo um significado oculto, uma mensagem codificada nas sutilezas de sua postura e gestos. Cada movimento era como uma pincelada no quadro da existência, uma contribuição única para a obra em constante evolução que é o mundo.
Minha mente tomava forma e sentido: “Cada louco com sua lucidez. Cada poeta com sua loucura…” A compreensão dessa sentença parecia crescer dentro de mim, como uma semente germinando lentamente. Ela capturava a essência daquele ser enigmático diante de mim, um ser que desafiava as convenções com sua singularidade e que, como um verdadeiro poeta da vida, abraçava sua própria forma de loucura para enriquecer o mundo com sua perspectiva única.
Talvez a clínica fosse um refúgio, um espaço onde ele pudesse compartilhar sua visão singular com outros que apreciassem a beleza intrínseca de sua forma de ser. Enquanto observava sua figura desvanecer-se no horizonte, senti-me inspirado pela lição silenciosa que ele deixou para trás: a de que a loucura e a lucidez não são opostos, mas sim partes interligadas do mosaico humano, contribuindo para a riqueza incomparável da experiência humana.
A cena diante de mim permaneceu vívida na minha mente, uma lembrança dele entre os dentes-de-leão, me cativou. Com um sorriso tranquilo nos lábios, segui em frente, levando comigo as palavras profundas e a imagem de Benício, que misturava loucura e lucidez, cujo espírito livre continuaria a ressoar na sinfonia da vida.
Provavelmente, em meio a essas interações aparentemente surreais, reside uma verdade mais profunda. Talvez as cores e os sons, outrora separados por barreiras sensoriais, pudessem encontrar uma harmonia oculta, um elo que apenas alguns, como ele, conseguiam escutar e ver.
E assim, no espaço entre a lógica e a magia, na sinestesia das palavras e das cores, o mundo ganhava novas dimensões, ecoando a pergunta: “Será que o mundo ainda ouve as cores?”
Total de palavras: 1113
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FLORES EM UM LABIRINTO
Nouvelles-ˋˏ ༻✿༺ ˎˊ- Em meio a um cenário desolador e angustiante, o personagem encontra um caminho singular para preservar sua lucidez: um jardim que se eleva como um oásis de serenidade em meio ao caos interno. Cada flor que ele cultiva se transforma em um...