Centenária

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CENTENARIA

Ela permitiu que a conhecesse no ambiente de trabalho. Pequena, ágil, mais coerente e lúcida do que eu mesma e possuía um sorriso continuo. Sentou-se na cadeira a minha frente, como se fosse uma entidade que chegasse. Meu olhar encantado com sua existência se prende nesse momento, como se tudo isso fosse um truque de mágica. Ao mesmo tempo meu coração quer saber quem e essa existência de corpo minúsculo, porém, forte, como uma de ave de rapina. No meio dessa reza sem credo, algo me chama a atenção : sua data de nascimento.

- E essa mesma, está bem certinho sim, faço cem anos em maio deste ano".

Meus olhos se iluminam como se fossem as lamparinas que aguardavam o fosforo para existir. Temos o mesmo signo, nascemos em dias próximos, terei eu, essa benção de uma existência tão longa e plena de juízo: Será que os céus, a divindade, me concederiam um centésimo aniversário?

- Eu só vim aqui me consultar, porque tenho andado muito cansada e não aguento mais chegar até o fim do dia sem um bom cochilo. Essa era sua queixa. Cansaço. E minha mente já traçou todos os cenários do que essa jovem senhora contemplou - casamentos, separações, presidentes, coronéis, troca de moedas, mortes, nascimentos, revoluções, manifestações. Quanta historia teria para compartilhar, tornando qualquer momento uma sala de cinema com sua narrativa. Centenária, minha mente repetia isso, enquanto a contemplava..

Então Fatima começa a contar sua trajetória. Nasceu quando os pais não esperavam mais por isso, ainda mais sendo menina. Flor ela e a mãe, entre todos os troncos masculinos da família. A mãe subiu ao reino celeste quando ainda era pequena. O que uma flor poderia fazer em um meio tão agreste: Resistir, se reinventar e viver. E assim, comentou que até hoje se lembra do facão que ceifaram seus cachos. O pai a deixou com curtíssimos fios, vestiu com as roupas dos filhos de seus irmãos. Ela, o pai viúvo e a boiada eram sua família. Aprendeu cedo tal oficio - tocar gado pelas estradas arenosas destes pais. Então continua sua auto-biografia:

- Como sempre fui miúda, passei fácil por moleque durante toda minha vida, nunca fui molestada ou desrespeitada no meu trabalho nas estradas dessa vida- e com orgulho e peito levantado, me olha com seus olhos claros e fala "nunca perdi uma cabeça de gado na estrada", conta Fatima.

-Toquei gado nessas estradas por quase quinze anos seguidos"- conta Fatima enquanto desabotoa a manga da camisa e mostra a imagem de Nossa Senhora Aparecida tatuada no pulso, ousadia da bisneta que fez a santa quando Fatima já estava perto dos noventa anos. A parabenizo pela fé e coragem. Me atento, quem sou eu para falar de coragem, para quem cruzou estes pais montada em um cavalo, um facão na cintura?

-Até hoje sou devota a nossa senhora sabe...acendo uma vela pra "santinha" do lado do meu chapéu de boiadeiro e do meu falecido marido - diz Fatima com saudade no olhar.

Ela percebe meu encanto, minha curiosidade em sua história, como se fosse uma criança ansiando por um final feliz na fabula que ouve. Então, como as pessoas que são gratas e dividem o que tem, me fez saber que aquele que foi seu marido, era dono de terras no interior do estado do Paraná. Quando se viram, sentiu uma facada no meio do peito, mas lembrou de que era dona de si, aprendeu a ser quem foi percorrendo os estados enquanto mantinha o boi junto.

- Casei sim viu, com vestido de noiva e tudo, mas como uma condição: que meu marido não me proibisse de lidar com os bois. Então amor maior não sei se teria não, porque de imediato ele me deixou cuidando desses assuntos desde o começo, se não nem casado teria- conta Fatima com orgulho.

A realidade do ambiente de trabalho faz sua cobrança. Sua filha mais nova, que a acompanha, nos avisa que há mais pessoas querendo entrar. Terei que me despedir dessa minha heroína recém-conhecida, a contra gosto. La se vai a grande ave seguir seu voo. Queria que o tempo parasse, queria ouvir suas histórias, como a criança pequena que me tornei diante dela, só queria satisfazer meu desejo e curiosidade. Comer suas palavras como bolinhos de chuva. Brigadeiros.

Vejo Dona Fatima saindo. Tão pequena. Suas mãos como as cascas das arvoes se movem se despedindo. Parecem que bênçãos vieram voando como penugens. Percebo que não sou só eu encantada com essa ave de rapina. Outros colegas vêm ter mais momentinho de alegria ,como se ela fosse a matriarca de todos nós, que em sua existência centenária, nos gerou nas estradas que andou e veio contar belas historias.

Olho de novo, já com saudade no peito. La se vai a boiadeira com a graça de Nossa Senhora Aparecida.

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⏰ Last updated: Jul 15 ⏰

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