capítulo dois - entre irmãs

46 5 2
                                    


Aquele foi o encontro mais longo de que participei e o que mais me arrependi de ter ido. Chegar em casa e ouvir Nélia com suas reclamações, quando a única coisa que queria fazer era deitar e dormir na minha cama aconchegante, foi o fim para mim. Apesar de fazer parte do nosso cotidiano, não posso lidar com a bipolaridade dela. Digo no sentido de mudar de personalidade e humor a cada pessoa e instante que se passa. Eu não debato, ou pelo menos tento. Tem momentos que é inevitável. Mas eu entendo que foi jogada uma grande responsabilidade em suas costas, e foi colocada numa posição que não teve escolhas.

Cuidar de criança não é um trabalho fácil, principalmente quando se são três. Faz dois anos que nossa mãe nos deixou, não sabemos o real motivo (se é que tem motivos para fazer algo assim) me recordo bem de que ela ficou muito diferente, dias antes de partir e falava coisas do tipo "sacrifícios são necessários" que vai ter coisas que não vamos entender no momento, e que tudo que fazia era para o nosso bem.
Ela sequer se despediu, apenas pediu para que algumas pessoas da vila nos ajudassem sempre que fosse preciso.

Assim, conta a Sra. Hilda e Griselda. Elas têm sido nossa salvação, Principalmente a Sr. Griselda. Ela tem um lugar reservado no meu coração. Sempre que vou ao poço, faço questão de passar por sua casa e faço mais questão ainda de apreciar seu lindo jardim. É completo de belas flores, são tantas que nem sei o nome. É um dos meus lugares favoritos. Especificamente os bancos de madeira que ficam bem no finalzinho , é lá onde ela costuma me fazer de cobaia para suas receitas, que a princípio são uma delícia. E onde tiro inspiração para meus poemas. Ela é tão sozinha, usa óculos e tem o cabelo macio e branco como algodão. Conversamos sobre tantas coisas, eu aprendo demais com a Sra. Griselda.
Ela e Clarice, que me incentivam a escrever, dizem que eu levo jeito. Eu realmente amo isso.

- Meninas, levantem. Está na hora! - Nélia diz entrando no nosso quarto.
- Mas será possível isso? Nunca aprendem. - Continua, e sai pelo quarto recolhendo todas as nossas coisas do chão que para ela seria bagunça.

- Nélia, por favor. - digo baixinho enquanto mexo a cabeça para um lado e para outro.

- Eu não pedi por isso, não mesmo. É demais para mim!- exclama, enquanto relaxa os braços, deixando que se faça uma pilha no chão com todas as coisas que tinha recolhido. Sua respiração começa a ficar ofegante, até que de repente.

- AAAAAAAAA. - Ela grita.

Levanto-me rapidamente e acabo batendo a cabeça na cama de Anya, que fica logo em cima da minha. Acontece com mais frequência do que se possa imaginar, é o mais normal na rotina de uma menina com 1,70 de altura.

- Ai. - digo passando a mão onde dói.
Ergo a cabeça para cima e vejo Anya sentando na beira da cama com o semblante assustado olhando fixamente para Nélia.

Escuto fortes passos vindo do corredor da casa. Hillary entra agitada no quarto.
- recomponha-se - Disse.

- Hillary, minha irmã, espero que vocês nunca passem pelo que estou passando. - disse Nélia, saindo em direção à porta.

- Do que está falando? Passamos pelo mesmo que você. Lidamos com a mesma dor. A dor do abandono, Nélia.

Ela volta imediatamente e parte para cima de Hillary.

- Acha mesmo que é só isso, hein?
Eu sei de coisas que vocês jamais poderiam saber. Jogaram para mim, não tive escolhas. E agora eu estou aqui, presa a isso. Eu só tenho dezoito anos e o desejo de poder viver sem culpa e medo.

Nélia desabafou. Vi os seus olhos se encherem de lágrimas.

O clima pesou, todas nós ficamos em silêncio por quase um minuto. Só escutávamos o barulho das carroças passando com mercadorias, o canto dos pássaros lá da árvore viva e as crianças animadas indo para escola.

- Temos que ir. - disse Anya, quebrando o silêncio. Desceu da cama e foi direto ao armário para se trocar.

- Apenas adiantem. - fala Nélia, dessa vez saindo mesmo pela porta.

- Não acha que esteja acontecendo mais alguma coisa, não é? - pergunto a Hillary.

- Eu não sei, Ande. Eu não sei. Conhece ela, sabe que não é a primeira vez.

- E nem será a última. - complemento.

- Estou pronta. - grita Anya, vindo toda sorridente dando vários giros. - O que acharam?

- Está linda, garota. - disse Hillary com um olhar admirador.

- Sempre linda, Anya. Digo com um sorriso bobo no rosto.

- É, é, eu sei disso. Obrigada, senhoritas. - respondeu, segurando sua jardineira branca com uma das mãos, e flexionando os joelhos, com a cabeça baixa em sinal de reverência.
Usava também uma blusa de algodão, manga longa e cor laranja. Foi Hillary que deu a ela.

- Venha cá, cuide. - Hillary puxa anya pelos braços e a coloca sentada na cadeira em frente ao espelho da penteadeira. - irei fazer aquele penteado que você ama.

Todos pensam que entre nós quatro, eu e anya somos as mais próximas por sermos as mais novas. A verdade é que Anya e Hillary são inseparáveis, uma completa a outra. São verdadeiras almas gêmeas.

- prontinho, terminei.

- Uau, está perfeito. Obrigada lary. - responde Anya, dando um abraço em Hillary.

É assim que ela a chama desde pequena. Hillary dividiu o cabelo ao meio, fez duas tranças até metade e prendeu deixando o restante solto. Esse é o penteado favorito de Anya.

Hillary é tão atenciosa, faz tantos penteados na gente, cada um mais lindo que o outro. É tanto que as outras meninas da vila sempre vão em nossa casa para que Hillary faça penteados nelas também. É um sucesso essas tranças.
Ela tem talento, mas acredito que também seja por ter vontade de fazer em si mesma e não conseguir, já que seu cabelo é tão curto que só pode usá-lo solto.

- E você Ande, o que vai querer? - pergunta, olhando para mim pelo espelho.

- Apenas uma trança. - Respondo.

Nessa manhã quero usar meu vestido azul rodado e meus sapatos pretos, não tem muita diferença. É o que uso no dia a dia.

Hillary finaliza minha trança - está linda, Ande. - diz sorrindo para mim.

- É melhor irem logo para não se atrasarem e evitar que Nélia se estresse mais uma vez. - continua Hillary, nos levando até a porta principal da casa.

Eu e anya descemos a escada, enquanto Hillary nos observa da varanda.

- Tchau lary. Grita Anya fazendo um sinal com a mão.

- Tchau meninas. Ah, e não se esqueçam de passar na casa da Sra. Griselda para tomar café da manhã.

- Já estava nos meus planos. - respondi sorrindo.

Seguro na mão de Anya e saímos pela vila em direção a casa da Sra. Griselda.

Ande de Além Onde histórias criam vida. Descubra agora