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Observo a calada da noite pela janela que ocupa toda a parede do quarto. Ramona dorme pesado ao meu lado, deitada de costas para mim e enrolada em um lençol fino. Já não sinto mais o cansaço de quando me deitei, jurando que teria uma ótima noite de sono; então fico ali, em silêncio com um pequeno charuto entre os dedos. Nem me preocupo em acordar minha parceira com o cheiro, apenas deixo o sabor do tabaco adentrar minhas vias e, aos poucos, me relaxar.

Enquanto me perco em devaneios, lembro da festinha na casa de Vanessa que recusei comparecer, com o temor de encontrar Naná que sempre fazia questão de participar desse tipo de confraternização. Nosso relacionamento havia esfriado um bocado, sobretudo após meu término mais recente, já que ela tinha a certeza de que eu era a culpada por estragar tudo. E não, ela não estava errada, eu realmente havia estragado tudo. Mais uma vez.

Meses, várias mulheres e vários shows depois, aquela italiana maldita ainda era a única coisa a sempre voltar à minha mente. Me pergunto em que ponto perdemos o foco. Por mais que tivesse carinho pela minha parceira, sabia que jamais sentiria por ela nem parte do amor que a italiana me fazia sentir. Claro que, anos e anos após nos conhecermos, nossa paixão ainda era terrivelmente arrebatadora e, na duvida, até maior; Mas isso aparentemente não era o suficiente para permanecermos juntas. Após tantos desencontros, discussões e brigas, me afastei. Me fechei para aquele relacionamento que, mesmo sendo o que me mantia com brilho nos olhos, também era o que mais me feria.

Combino minha falta de sono com a vontade de tapar esse enorme buraco em meu peito: Visto uma calça por cima da camisa levemente amassada que usava e maquio meus olhos, pronta para marcar presença na festa e, quem sabe, sair de lá acompanhada. Não era algo incomum para nenhum conhecido meu e muito menos para Ramona, que fingia não saber e tentava a todo custo estar sempre presente, marcando território.

Entro em meu carro com os músculos ainda relaxados do whiskey que havia bebido horas antes, diminuindo meu pesar em precisar dirigir. Após meu ultimo acidente tento evitar ao máximo colocar as mãos no volante, preferindo pagar um motorista particular e dirigir somente quando fosse de extrema necessidade. Passo o trajeto ouvindo Chico Buarque, pulando as várias músicas românticas que ameaçavam desviar meu juízo. Em poucos minutos estou adentrando a extensa sala de lazer em que, geralmente, Vanessa realizava suas festas. Tinha boas lembranças de bebedeiras e cantorias ali. Cumprimento algumas pessoas, sem iniciar nenhuma conversa, e me dirijo até a dona da casa, com o fim de sauda-lá e trocar breves amenidades.

– Ana? – sua voz soa surpresa ao me ver, desviando sua atenção do grupo de pessoas com que conversava. – Achei que não te veria aqui hoje, mulher! – trocamos um breve abraço e aceno para as pessoas ao redor.

– Resolvi marcar presença, para variar. – pego uma taça de champanhe de um dos garçons que passa e bebo tudo em um gole, sentindo meus nervos ficando dormentes. Van me olha, surpresa, com algo ainda indecifrável em sua expressão. – Tudo bem?

– Claro! – ela passa a mão por minhas costas e nos afasta um pouco do grupo, baixando sua voz. – É que, como achei que não viria, não me importei em desconvidar algumas pessoas...

– Ah, não ligue pra isso. – a interrompo – Vou ficar na minha hoje, só quero espairecer um pouquinho, hm? – dou um sorriso largo e me afasto, indo em direção ao bar e garantindo outra taça.

A luz baixa do ambiente fornecia uma atmosfera intimista ao cômodo, deixando meus olhos mais confortáveis. Tinha pavor de ser obrigada a ir em eventos cheios de spots e flashes, geralmente optando por usar óculos escuros ao sair. Ao decorrer do tempo, começo a me enturmar melhor, revezando o papo entre alguns grupos de conhecidos que estavam espalhavam pelo lugar. Quando vejo um cabelo curto platinado e familiar, me aproximo da mulher, que já me reconhece a metros de distância.

Tentei falar mas você não soube ouvir,
Tente admitir! – Gadú cantarolou alto, enquanto se aproximava de mim com os braços abertos.

Tentei voltar e pude ver o quanto errei! – cantei de volta, trocando um abraço rápido com ela e apontando os dedos em retorno, enquanto alguns conhecidos riam em volta.

– Te amei mais que a miiim! Bem mais que a mim! – berramos juntas, explodindo em uma gargalhada sadia.

Jogamos um pouco mais de conversa fora, relembrando nossos shows antigos e planejando sua aparição especial em um dos Ana Canta Cássia, que aconteceria em algumas semanas. Planejamos fazermos mais projetos juntas, trocamos fofocas sobre amigos em comum; saí de perto da paulista mais leve, contente por ter encontrado alguém que tinha mais afinidade por aqui.

Van tinha um pequeno palco em sua sala, com um grande piano de cauda e alguns outros instrumentos que faziam parte de sua coleção. De pouco a pouco, os mais musicais começam a se amontoar envolta do mesmo, cantando algumas canções e fazendo baderna. Me recosto contra um móvel em um canto mais discreto e fico ali, ora curtindo, ora cantarolando junto com o grupo, sem deixar de trocar olhares com as mulheres que considerava interessantes. Não converso mais com Van, que segue a dar atenção para os outros convidados.

Mais algumas taças depois, com a visão já um pouco turva, vejo Naná passar de longe, indo em direção à extensa varanda da casa. Finalmente entendo o motivo da hesitação de Vanessa ao me ver, provavelmente com medo de haver um clima chato entre nós. Não que eu fosse um poço de intriga mas, quando resolvia, sabia armar bons barracos. Dessa vez não chego a me importar com sua presença, sabendo não ter nada para conversar com a mesma. Prefiro manter a atenção nos sambas que começavam a entoar em minha volta e continuar afogando as mágoas em champanhe.

– Ana, canta uma, vai! – uma das mulheres que participava da "bagunça" me chama, me lançando um sorriso travesso. Hesito, tendo consciência do meu estado alterado, mas deixo para lá e subo no palquinho, pegando o primeiro violão que vejo e me sentando. No pior caso, eu enrolaria a língua e daria belas risadas com os que estavam envolta, então sem problemas. Eu não era nem de longe certinha e, por sorte, era isso que as pessoas gostavam em mim.

Espremo os olhos e observo envolta, reconhecendo alguns rostos conhecidos e outros ainda novos. Vejo Naná novamente, que faz um olhar apavorado ao me ver e torna a procurar por algo. Solto uma risada baixa, começando a dedilhar o violão e me perguntando o que cantaria, mas minha atenção é desviada para uma cabeleira morena que me soa familiar.

Ela estava ali. Seus olhos verdes, seus ombros largos, seus fios repicados e suas pernas torneadas eram irreconhecíveis, e agora habitavam novamente o mesmo espaço que eu. Nossos olhares se encontram, ela com uma expressão carregada de mágoa e eu, provavelmente, perdida e com cara de taxo. É como se imediatamente todo o álcool se esvaísse do meu corpo e desse lugar para a dor que sua falta me causava. Desvio o olhar, antes de ele ser notado por mais alguém e, sem pensar duas vezes, reposiciono o microfone e deixo meus dedos vagarem pelas cordas.

– Qualquer distância entre nós vira um abismo sem fim. Quando estranhei sua voz eu te procurei em mim. – Sinto o olhar da italiana sob mim assim que toco os primeiros acordes.

Eu estava ali, ela estava ali, e eu estava cantando nossa música. Relembro do momento em que escrevemos esses trechos, nossos cabelos espalhados pelo sofá da casa de vidro enquanto nossos corpos se recostavam um no outro. Canto com todo meu fôlego, com todo sentimento que resta em mim. Cada músculo do meu corpo sentia sua ausência, quase como se estivesse doente, em abstinência. Nunca imaginei que algum dia essa musica seria sobre nós, mas aqui estamos, frente a frente como meses atrás: ninguém vai resolver problemas de nós duas.

Durante a musica é como se o tempo parasse; a única coisa existente naquele momento era o olhar que trocávamos. Tinha uma imensa falta daquele verde escuro de suas íris, tendo vontade de pular do palco e parar à sua frente, só para a observar. Seu olhar parecia perdido, provavelmente em choque por me ver. Eu permaneço com uma expressão suave, sem saber parar de lhe olhar. Sinto meu corpo se arrepiar com o peso de sua presença ali. Aquele momento me fez perceber que precisava ver a italiana, saber se ela estava bem, sentir seu cheiro de perto; mesmo que tivesse a chance de ela me mandar a merda.

Assim que a musica acaba, Chiara sai do cômodo para a varanda, me fazendo largar o violão e ignorar as pessoas ao redor me dando elogios, indo atrás dela; Ela sempre seria a única capaz de me fazer largar tudo.



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Jardim dos sonhos - ChianaOnde histórias criam vida. Descubra agora