A carta que não enviei

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A garagem é o local onde a gangue trabalha e se reúne. Apesar de bem exposta, a grande estrutura rosa tratava-se apenas da parte ilegal das HellsAngels, diferente da mecânica, que, além das meninas que trabalham consigo, também contratava civis para exercer o trabalho. O pátio é realmente grande, com bastante espaço para os bailes da Furiosa, festa ilegal organizada periodicamente por Mabel, cujo cargo é se responsabilizar pelos eventos em geral. Nas paredes e no chão do local, vários grafites são dispostos; até mesmo o viaduto que passa por cima de uma parte do pátio não escapou: "recruta não retruca", "A hell e a angel contra o mundo", "desliga na minha cara, vain", eram alguns deles, com frases marcantes para a história delas. A parte de dentro era um galpão enorme e bem iluminado, com o chão claro e espaço para o desmanche de carros. Subindo uma pequena escada, uma parte mais alta do piso continha dois sofás grandes e pretos, jogos de fliperama, peças de carros e, óbvio, as mesas onde fabricavam seus produtos.

Subindo outra escadaria, obtinha-se acesso ao mezanino, onde um bar com alguns bancos dispostos era encontrado. Se você seguisse para o outro lado antes de subir as escadas, encontraria o escritório da patroa, antecipado pela sala onde ficava o baú principal da gangue e o vestiário logo ao lado.

Em um primeiro momento, dirigir até lá e subir no telhado, mesmo que existam terraços de diferentes níveis por ali, inclusive um que dava acesso direto ao letreiro rosa neon com os dizeres "HAHAHA", parecia a melhor opção. Estaria perto das meninas de sua gangue e atenta ao rádio enquanto escrevia a carta que inutilmente tentou negar-se a fazer. Sentada, observando os carros passarem pelo viaduto, com o barulho das conversas dispersas e a constante troca de informações na rádio, Cristal se lembrou por que, mesmo que dissesse para nenhuma de suas meninas o fazer, ia para um lugar longe e desligava a comunicação.

Refazendo todo o caminho que demorou a realizar anteriormente, reparava em todos os pontos daquele lugar tão belo. Lembrava de todo o trabalho que tiveram para elaborá-lo, a ousadia em ser ao lado de uma DP. Cada cantinho daquele lugar lhe lembrava da história da gangue, a qual construiu sozinha no início e acompanhada de Renata por todo o restante do tempo. Afinal, quando teve que exonerar 8 de 10 integrantes de uma vez só, Renata foi a única que restou ao seu lado. "Tá pronta, parceira, pra botar a gangue pra cima de novo?", e elas conseguiram.Divagando por toda a história que vivenciou em todos esses anos ao lado de sua melhor amiga, Cristal mal notou quando chegou ao ponto que pretendia, um lugarzinho no meio do nada, onde os carros mal passavam e os passarinhos cantavam somando à som leve da brisa. Calmo, sereno, sincero e real, como precisava ser nesse momento.

"Estou saindo da rádio, daqui a pouquinho estou voltando" - avisa, ouvindo confirmações alternadas de ruídos de interferência. Por garantia, sua localização foi enviada para Selena e Cecília, que fazia questão de sempre saber onde sua patroa estava.

Não sabia como começar, não sabia o que queria dizer, mas, aos poucos, a inspiração se tornava presente. Aos poucos, a realidade se jogava contra si, e, mesmo que trêmulas, as mãos anotaram palavra por palavra, tão sinceras quanto podia ser.

Carta da Cristal

A Selena pediu para fazer uma carta sobre os meus sentimentos em relação ao desaparecimento da Renata, então aqui vai:Não sou uma pessoa que costuma demonstrar sentimentos, talvez seja uma consequência por conta de tudo que já passei na vida, uma forma de proteção. Mas confesso que entrar na Garagem todo dia e ver o grafite "Hell e Angel Contra o Mundo" tem me deixado sem esperanças. Também não é nada fácil ver o grafite da hierarquia e cogitar que possivelmente não teremos um outro capítulo da nossa história juntas.Poucas vezes na minha vida me senti impotente e incapaz como estou me sentindo agora. Quem te sequestrou? Qual o motivo? Já fomos atrás de todas as pistas possíveis e absolutamente nada de você.Às vezes penso: o que você faria no meu lugar? Você desistiria de procurar por mim? Quanto tempo ficaria me procurando? Sou boa em esconder emoções, boa até demais. Ninguém consegue imaginar o tamanho do fardo que eu carrego dentro de mim tentando deixar essa gangue de pé, mesmo sabendo que é bem provável que a gente nunca mais vá se ver.Tenho tentado manter as aparências e viver minha vida "normalmente". As meninas não podem perceber que a gangue está caindo em ruínas. Eu enchi a cara algumas vezes, e tem ficado cada vez mais frequente. Mas o que eu deveria estar fazendo? EU NÃO SEI. Eu tento ter todas as respostas do mundo, MAS EU NÃO TENHO, EU NÃO CONSIGO TER, ESTÁ FORA DO MEU ALCANCE.E tudo isso só piora quando eu lembro daquele nosso PEQUENO, SIMPLES, NADA COMPLICADO detalhe. Eu e você. Não como amigas e não como 01 e 02. SENTIMENTOS. E quando eu tô com você, eu sinto que..."

My best mistake (CRISNATA)Onde histórias criam vida. Descubra agora