Sabe, quando nós morremos, algumas lembranças vão embora, a grande maioria delas. Acho que por um lado é uma dádiva, já que assim não sentimos saudade da nossa vida; afinal, não tem como sentir saudade de algo que nem sequer existiu, certo?
Por outro lado, existe sempre uma sensação de vazio, uma peça faltante, que foi roubada, mas não sabemos se queremos ela de volta ou simplesmente fingimos que ela nunca existiu. Dói menos.
Mas algumas das lembranças mais doloridas sempre ficam conosco.
Eu lembro a sensação de brilhar nos palcos, das luzes em mim, dos vestidos elegantes que as mulheres que estavam na platéia usavam, com suas penas e jóias brilhantes no pescoço, as vezes diamantes, as vezes esmeraldas, rubis, raramente uma de jade.
Particularmente, a jade sempre foi a mais bonita, nós não víamos muitas delas na Rússia, elas eram bem...exóticas para algumas de nós.
A sensação de flutuar no palco, de pular, girar, movimentar meu corpo conforme o maestro dirigia a orquestra com suas mãos se movimentando como mágica, redigindo uma melodia que nos transmitia saudade, amor, tristeza, felicidade. Um sentimento tão inexplicável que jamais poderia ser colocado em palavras, todo o meu amor e paixão pelo ballet era intenso demais para que uma palavra só conseguisse difinir.
Lembro-me que comecei a dançar desde que era muito nova, no início era frustrante não poder dançar de uma vez, eu queria os palcos, o público, os aplausos, eu queria que os outros me vissem e me elogiassem, a minha técnica, meu talento,meu esforço e tudo o que eu tinha feito para ser a melhor.
Mas, por que ser a melhor não bastou?
Por que a cada passo que eu dava, eu sentia que estava errando todos eles?
Por que não importava o quanto eu me esforçasse , sempre teria alguem melhor?
Mas, e se não tivesse?
E se eu estivesse tão obcecada pela dança que comecei ver a mim mesma como um problema, como uma pedra no meu caminho.
Desde quando eu mesma me tornei um obstáculo?
Eu dei tudo de mim naquela apresentação, mesmo sentido o vidro cortando meus pés a cada movimento mínimo que eu fizesse, eu ignorei a dor, ignorei o sangue escorrendo dos meus pés aos poucos; eu sorria, eu dançava, então por que eu não continuei?
Eu tinha dado meu melhor, certo? eu tinha recebido os apalusos antes da cortina se fechar, certo? Eu havia sido uma bailarina perfeita, certo?
Eu acertei tudo, o tempo, a música, os passos, o jeito que eu sorria, o jeio que mexia meus dedos, minhas mãos, meus braços, minhas pernas, meu tronco, meu tudo; eu acertei, certo?
E então, a cortina se abriu novamente, e eu dancei, a mesma história de antes
Por que Romeu e Julieta era tão romântico?
Eu estava linda, eu fui perfeita, eu dei meu melhor, eu consegui.
Mesmo que minhas sapatilhas estivessem manchadas de vermelho carmesim, mesmo que eu não sentisse a ponta do meu último dedo, nada importava; porque foi tudo perfeito.
E eu fui ótima,eu recebi meus aplausos, as pessoas assobiavam para mim, eu tinha conseguido, o maior ato da minha carreira. Naquele momento eu era a melhor.
Então, por que eu estava no chão?
Por que o Romeu estava me chamando, eu havia errado?
Por que ele estava tão desesperado, o que eu fiz de errado, eu não havia sido perfeita?
Eu dei tudo de mim, dei o meu melhor e muito mais, dei até mesmo o que eu não tinha.
Minha mãe sempre me disse que obsessão vencia de talento, então por que as cortinas estão se fechando para mim?
Cortinas? Não; não são as cortinas, são meus olhos, sou eu.
Meu espetáculo foi tão curto, eu quero um número maior. Por favor, me deixe dançar novamente, me deixe voltar, me deixe dançar. Eu imploro.
E prometo que desta vez, eu serei melhor.
Afinal, obsessão vence de talento, certo?
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Jardins dos Mortos
القصة القصيرةExistem muitas histórias pelo mundo, uma mais maluca do que a outra,; existem contos de pescadores, histórias de terror, histórias de fantasia e muitas outras milhares que eu nunca teria tempo de vida o suficiente de contar aqui para voces; mas def...