Capítulo 24 - Sacrifício

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Enquanto saíamos apressadamente da casa, algo no ar começou a incomodar os meus sentidos. O cheiro era estranho, familiar e irritante ao mesmo tempo. Pimenta. Alguém tinha espalhado pimenta no ar, saturando o ambiente com partículas que se infiltravam nas minhas narinas, queimando e ofuscando o meu olfato. Era uma tentativa deliberada de me impedir de rastrear qualquer presença ao redor. Alguém sabia exatamente como me neutralizar.

Saímos para o pátio, o terreno irregular a ranger sob os nossos pés. A lua estava alta, mas a luz que projetava mal iluminava o espaço, deixando as sombras a dançar nas extremidades da nossa visão. Foi então que percebi que não estávamos sozinhos.

Os Soldados da Luz surgiram das sombras como predadores pacientes, cercando-nos com precisão meticulosa. Sentia a ameaça no ar, o perigo iminente. Sem hesitar, coloquei-me à frente de Veed, abrindo os braços para o proteger, mantendo-o atrás de mim. Ele era o meu primeiro pensamento, a minha prioridade.

Os soldados moveram-se em uníssono, numa sincronia perfeita que apenas acentuava o perigo. Antes que pudessem reagir, avancei na direção deles com toda a força e velocidade que me restava, determinado a cortar qualquer tentativa de usarem os apitos que sabiam ser a minha maior fraqueza. Ataquei com ferocidade, os meus movimentos rápidos e letais, cada golpe calculado para os incapacitar antes que pudessem sequer tocar nos apitos.

Mas então, senti a presença de outros dois soldados que se juntavam ao grupo. Eles emergiram das sombras com os apitos já nas mãos, e antes que eu pudesse reagir, começaram a soprar. O som agudo cortou o ar como uma lâmina invisível, atingindo-me com uma dor excruciante. O ultrassom atravessou-me como uma tempestade, desorientando-me e atirando-me ao chão, com a dor a tomar conta de cada fibra do meu ser.

Caí de joelhos, com as mãos a agarrar a cabeça, tentando abafar o som que parecia querer partir-me o crânio. Mas antes que pudesse afundar na escuridão da dor, senti um toque suave e quente. Veed estava ao meu lado, a sua mão ensanguentada a estender-se para mim. Ele tinha cortado a palma da mão com uma pedra lascada, o sangue a escorrer lentamente.

"Ram," sussurrou ele com urgência, os seus olhos fixos nos meus. "Bebe."

Sem hesitar, levei a sua mão à boca e bebi do seu sangue. Assim que o sabor ferroso e quente tocou a minha língua, senti uma onda de energia a percorrer-me o corpo. A dor causada pelos apitos começou a dissipar-se, como se o sangue de Veed neutralizasse o efeito devastador do ultrassom. Era um alívio instantâneo, quase inacreditável. A força retornou aos meus músculos, a clareza à minha mente.

Mas foi então que ouvi uma ordem, pronunciada num tom frio e implacável. "Matem-no!" Um dos soldados tinha falado em japonês e, num instante, percebi que a ordem não era para me eliminar, mas para matar Veed. Se o meu coração ainda batesse, teria parado naquele momento.

"Veed, cuidado!" Gritei, virando-me para ele, com o instinto protetor a sobrepor-se a qualquer outra consideração.

O perigo para ele era real, mais do que nunca. Eu não podia permitir que o tocassem. Num movimento rápido, coloquei-me novamente à sua frente, pronto para enfrentar o que viesse a seguir. Mas, ao ver a determinação nos olhos dos soldados que restavam, percebi que o confronto não terminaria bem para eles. Decidiram fugir, dispersando-se nas sombras de onde haviam surgido, deixando para trás dois dos seus companheiros.

Esses dois soldados, ambos japoneses, estavam de joelhos, derrotados e resignados. Antes que eu pudesse reagir, num movimento rápido e coordenado, ambos sacaram pequenas lâminas e, sem hesitação, degolaram-se. O sangue jorrou, manchando o chão do pátio enquanto as suas vidas se esvaíam diante dos nossos olhos.

Eu e Veed ficámos estupefactos, incapazes de compreender a brutalidade do ato. Não era apenas a violência do suicídio, mas a frieza com que o fizeram, como se preferissem a morte a falhar a missão. Era uma lealdade fanática, uma devoção que eu conhecia bem dos tempos antigos, mas que nunca deixava de me chocar.

Veed estava ao meu lado, o seu coração a bater tão rápido que eu conseguia quase ouvir. Ele estava em choque, tentando processar o que acabara de acontecer, mas algo mais o estava a confundir. Aproximou-se de mim, com os olhos cheios de incerteza e medo, a mão a tremer ligeiramente.

"Ram," começou ele com a voz tensa e trémula. "É o meu coração ou é o teu?"

Por um momento, eu também fiquei confuso. Senti algo estranho, uma pulsação fraca e irregular dentro de mim, algo que não devia estar lá. Coloquei a mão no peito, onde, por todos os direitos, não devia sentir nada.

"O meu coração não bate," disse, a minha voz a sair mais baixa do que o normal, quase incrédula. "Pelo menos, não deveria..."

Mas havia algo. Um batimento fraco, quase impercetível, mas real. A surpresa e a confusão dentro de mim aumentaram. Como era possível? A minha mão continuava sobre o peito, tentando entender o que estava a acontecer, enquanto o olhar de Veed se encontrava com o meu, cheio de perguntas sem resposta.

A minha mente estava a correr com possibilidades que não queria considerar. Será que o sangue de Veed estava a alterar algo fundamental em mim? E, se sim, o que isso significava? Para mim, para nós?

Uma coisa era clara: nada mais era como antes. E, ao olhar para Veed, soube que, de uma forma ou de outra, estávamos ambos a mudar. O que isso significava, ainda estava por descobrir, mas a ligação entre nós estava a tornar-se mais profunda e mais complexa do que qualquer um de nós poderia ter antecipado.

Sinódico de Sangue ( I also have it in the English Version)Onde histórias criam vida. Descubra agora