14 de Agosto

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— Ela era minha melhor amiga... — Disse o jovem bêbado, Henrico, sentado na cadeira de plástico da lanchonete, perto do balcão.

— Se era tua melhor amiga, por que te abandonou? — Questiona Verônica, contando dinheiro na caixa de papelão que guardava os trocados.

— Bem... pouco antes de eu perceber que ela tava diferente, ela mesma me falou que tava em uma fase diferente da vida agora. Tava indo pra faculdade, fazer psicologia. Disse que estávamos em momentos diferentes das nossas vidas e que isso dificultava nossa conexão da mesma forma que antes. Por isso foi embora. Isso machuca...

— E o que há de errado nisso? Ela tem a liberdade de fazer o que quiser da vida, não dá pra controlar — questiona Vini, o cozinheiro aos fundos da lanchonete.

— Ela mentiu quando disse que tava numa fase. Se realmente tava em um momento tão complicado da própria vida, por que continuou com os mesmo amigos? Ela só se distanciou de mim, mas os outros... Os outros continuaram do lado dela. Ela os manteve com ela.

— Ora... — começou Verônica, fechando a caixa — Ela não te considerava de verdade. Talvez tivesse usando a amizade de vocês pra suprir alguma coisa que faltava na vida dela na época em que se conheceram.

— Não acho — interrompeu Vini —, penso que ela... Só não te via mais da mesma forma. É óbvio: as coisas mudam. Sua ex amiga não é uma exceção. O tempo passa, as pessoas amadurecem, seguem rumos diferentes de suas vidas. Isso diverge de quem conheciam, acabam se distanciando. É natural. Não se pode impedir.

— É... — disse o jovem sentado às mesas da lanchonete, devorando um pastel quentinho recém tirado do forno. — Sei disso. Não é a primeira vez que isso acontece. É nem vai ser a última. Vou conhecer pessoas novas, vou perenxergueoas antigas. É um ciclo. O que importa é o que nós vivemos, não é?

— De certo, sim — responderam os dois trabalhadores, em couro.

— Esse é o problema: ela foi embora, sem se despedir, sem lembrar. Ela não se importa com o que nós vivemos. Quer fingir que eu não passei de... um brinquedo pra ela. — O jovem toma um gole de refri, limpa a boca e volta a falar. — Alguns dias depois do pedido dela de distanciamento, ela veio atrás de mim com papo de "quanta saudade de você!". Fiquei tão puto, porra, ela quer me controlar! Quando ela quer sumir, tenho que concordar. Quando ela quer voltar com o rabo entre as pernas, sou obrigado a aceitar e fingir que nada aconteceu. Que merda!! Por que não posso fazer o mesmo? Se eu fizer, vou ser apedrejado por tudo, por todos, por ser alguém ruim pra ela. Ela só sabe apontar os erros alheios.

— Não é falta de consideração da sua parte. Você se esforçou pra entendê-la, não acho que ela tenha feito o mesmo — disse Verônica.

— Não há certou ou errado. Os dois se machucaram e, querendo ou não, feriram um ao outro. É como uma guerra: não há vencedores. Só perdas — afirmou Vini. — Isso que você fez, fruto de traumas e mais traumas da suas experiências passadas, é o mesmo caso dela. Duas pessoas que não poderão se conectar novamente até que estejam na mesma sintonia, lidando corretamente com suas dificuldades de lidar com sentimentos alheios.

— Tenho tanta raiva dela — disse Henrico.

— Será que sua raiva não é por causa de que ainda a tem no coração, bem no fundo, junto a tudo que vocês viveram juntos? Mas sente que ela não faz o mesmo — disse o cozinheiro, ao som crocante da fritura e de panelas batendo.

— Eu tento seguir em frente, esquecer tudo, da mesma forma que ela faz. Mas eu não consigo. Já joguei fora tudo que remetia a ela, mas ainda me pego pensando no que ela sente.

— Ela sente saudade, Henrico — disse Verônica.

— É impossível de saber — responde ele.

— Há muita coisa em nossa vida que jamais vamos saber. Desde o sentido da vida, até o que passa na cabeça de pessoas como sua ex melhor amiga. Vai ver, nem ela sabe direito o que sente sobre isso — acrescentou Vini, batendo com algo sobre outra coisa macilenta, talvez massa de pastel.

— Acho que você deveria perdoá-la — comenta Vini.

Henrico arregala os olhos.

— Eu nunca vou perdoá-la por isso.

Verônica ri, pomposa. Responde:

— Querido, você não entende. Vê o perdão como uma carta de amor ao seu inimigo.

O cozinheiro, ao som crocante de pastéis fritando, começa a falar:

— Veja o perdão como... uma forma de livrar seu coração dela. Uma forma de seguir em frente, de sentir que está livre do ódio, da repulsa, da amarguesa.

— Sei que não é fácil perdoá-la pelo que ela te fez sentir. Não dá para voltar atrás — Verônica começou a colocar mais pastéis na vitrine da lanchonete. — Porém, perdão não significa que será obrigado a amar seu inimigo. Não, não é isso. Será uma forma de livrar-se dele e do mal que ele te fez. Caso contrário, dedicará sua vida a isso: remoê-lo.

— Eu acho que fiz mal a ela — disse Henrico, frio, severo.

Verônica o encara de soslaio, arqueando a sobrancelha.

— Por que pensa isso? — Questiona Vini.

— Ela me falou que... que sempre que me olhava, lembrava que fez a escolha certa. Fiz algo pra ela que fez ela pensar assim.

— O máximo que você fez foi ser quem você é. E, quem quer que você seja, não é o bastante para ela no momento — respondeu Verônica.

— Pessoas especiais entram em. nossas vidas e se tornam tão momentâneas quanto um sereno. É bom enquanto dura, mas nada é para sempre, querido — disse Vini.

— As memórias ficam, elas te ajudam a evoluir como pessoa.

— Porém, nunca se sabe quando aquelas pessoas poderão voltar para nossas vidas. A pior parte é a despedida, o que vem depois é impossível de prever.

O jovem escorreu uma lágrima dos olhos, seguido de um gole de refri.

— Eu confiava tanto nela, cara.

— A vida te decepciona para que deixe de viver em ilusões e enxergue a realidade.

— Além do mais... — Começa Verônica, pondo pastéis em um prato. — Você, Henrico, nunca teria aprendido a andar de bicicleta se a pessoa em quem você confiava não tivesse te soltado. — Verônica entrega o prato para o jovem — Mais algum pedido, querido?



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