Capítulo 2

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Ao sentir o calor intenso que se alastra por todo o meu ser, roubando-me o fôlego, desperto de súbito, como se emergisse das profundezas de um sonho febril. O quarto, tenuemente iluminado por uma solitária lamparina, revela o contorno sereno de Carlotta e Annabel, cujos corpos repousam em sono profundo. Com passos suaves, e sem quebrar o silêncio que domina a noite, estendo a mão até alcançar uma manta que jaz ao lado de minha cama.

Ergo-me com cautela, caminhando de forma etérea até a porta, cujas dobradiças, ao serem forçadas, soltam um leve rangido, como se a própria casa quisesse sussurrar seus segredos. Um vento frio, vindo de além, percorre-me a espinha, provocando um estremecimento involuntário. Mas sigo adiante, atravessando aquele interminável corredor, cujas sombras parecem dançar ao ritmo da escuridão, até que finalmente alcanço o último andar.

Ali, na varanda, meus pés se detêm, como que enraizados pelo magnetismo da cena que se descortina. A lua cheia, majestosa e solitária, domina os céus com sua luz prateada, derramando sua imensidão sobre o mundo adormecido. Sinto-me pequeno diante daquela vastidão, como se a lua fosse um espelho para minha alma, revelando o insondável mistério da noite.

Sempre nutri uma paixão incontida pela lua, cuja luz intensa parecia sussurrar-me segredos que apenas eu podia ouvir, noite após noite. E justamente naquela, cedi ao seu chamado e deitei-me no chão gélido do castelo, onde o frio do mármore contrastava com o fervor de meus pensamentos. 

Fechei os olhos e deixei-me guiar pelos sussurros etéreos que me transportavam a um vasto jardim, onde cada flor parecia pulsar com vida própria.

Dentre as sombras que se entrelaçavam sob a luz da lua, distingui a figura de um homem, trajado como um jardineiro, cuja silhueta portava um ar de mistério . Ele caminhava em minha direção, segurando delicadamente uma rosa entre os dedos. 

Meu coração, tomado por um ímpeto irresistível, ansiava por lançar-se em seus braços, por sentir o calor de seu abraço e o toque de seus lábios. No entanto, um obstáculo invisível me impedia de prosseguir.

Desejava, com todo o meu ser, fundir-me naquele encontro, mas ele, com a serenidade de quem sabe mais do que revela, continuava a caminhar, sem jamais voltar o olhar para mim. Abri os olhos, e a visão do homem desvaneceu-se como névoa , deixando-me novamente diante da lua. Lá estava ela, misteriosa e infinita, guardiã dos segredos que se escondem por trás de seu brilho imaculado.

Como pode um astro desprovido de brilho próprio exercer tal fascínio sobre minha alma? Como pode tamanha beleza, apenas um reflexo, cativar-me tão profundamente? Esses pensamentos enredam minha mente enquanto continuo a vagar pela imensa varanda do castelo, cujas pedras frias parecem ecoar  o som dos meus passos . Meu desejo ardente é voltar a enxergar as sombras de Yasser na vastidão da noite, pois é ali, entre as penumbras, que meus segredos se revelam.

Meus olhos, porém, se desviam momentaneamente, pousando sobre a pequena fonte de água que repousa no centro da varanda, imóvel como um espelho de cristal. Aproximo-me, e ao contemplar as águas paradas, vislumbro uma figura que faz meu coração acelerar. É a silhueta do príncipe Henrik, emergindo da obscuridade, seu reflexo projetado com precisão  sobre a superfície da fonte. Ele se aproxima, sua presença inconfundível irradiando uma aura de poder e mistério. Cada passo seu ressoa em meu peito, como um prenúncio do inevitável encontro, deixando-me suspensa entre o sonho e a realidade:

— O que faz aqui? — A voz do príncipe Henrik rompe o silêncio da noite, carregada de uma autoridade que faz meu coração disparar.

— O que vossa alteza faz aqui? — rebato, tentando esconder minha surpresa com uma pergunta devolvida, mas o tremor na minha voz me trai.

— Perguntei primeiro, Leonor — ele responde, um sorriso malicioso se formando em seus lábios enquanto se aproxima com a graça de um predador. Um vento frio atravessa a varanda, arrepiando minha pele. Sinto-me vulnerável sob o peso de seu olhar e, em um gesto instintivo, desvio meus olhos para seus pés, buscando uma saída.

— Olhando a lua — murmuro, tentando recuperar a compostura.

— Não sabia que também nutria amores por ela — Henrik comenta,  e noto a curiosidade dançando em suas palavras.

— Como sabe que nutro amores pela lua? — pergunto, minha voz quase um sussurro.

— O castanho dos seus olhos está com um brilho tão intenso ao encarar a lua que pude notar seu amor por ela apenas ao te observar de longe.

— Então o senhor me observava? — questiono,  e sinto o rubor subindo pelo meu rosto, embora a noite oculte minha vergonha.

— Queria saber quem estava invadindo o meu local preferido. — ele confessa, o sorriso em seus lábios se alargando levemente, como se se divertisse com a situação.

 Sinto-me enredada em um jogo que desconheço, onde as regras parecem estar escritas nas sombras e nos reflexos prateados da lua.

— Parece que não sou eu a pessoa que queria ver — diz Henrik, sua voz agora tingida de uma melancolia inesperada.

— Acha que quero ver alguém? — pergunto, tentando manter minha postura firme, mas a proximidade dele faz meu coração acelerar de maneira incontrolável. Cada passo que ele dá em minha direção diminui a distância entre nós, e logo percebo que estou encurralada, sem escapatória.

Henrik levanta a mão lentamente, e com um gesto surpreendentemente terno, ele prende um cacho loiro que havia escapado da minha touquinha de cetim. Seus dedos deslizam por meus cabelos com uma suavidade que contrasta com a intensidade de seu olhar. O sorriso que antes brincava em seus lábios desaparece, e ao se inclinar para sussurrar em meu ouvido, sua voz é profunda e envolvente:

— Não me importo de dividir este lugar com você a partir de agora.

Seu sussurro faz meu corpo estremecer.

Dou um passo para trás, tentando criar distância entre nós, mas sinto o vazio sob meus pés e meu corpo inclina-se perigosamente em direção à fonte. Antes que possa reagir, os braços firmes de Henrik me envolvem, impedindo minha queda. O coração dispara enquanto o rosto dele se aproxima, e a pouca luz que reflete em seus olhos provoca em mim uma sensação estranha, uma mistura de inquietação e fascínio.

— Não tenha medo de mim, não farei nada que não queira — ele murmura, sua voz envolvente, enquanto coloca meu corpo de volta em frente ao seu, com cuidado e precisão. O calor de suas mãos ainda persiste em minha pele, mesmo após ele me soltar.

— A futura princesa precisa ser um pouco mais atenta. — ele acrescenta, com  um brilho travesso retornando ao seu olhar.

Sinto o peso de suas palavras e o duplo sentido que carregam. A realidade da minha posição ao lado dele, como futura princesa, torna-se ainda mais palpável naquele instante. Ele observa cada nuance do meu rosto, esperando talvez por uma reação, enquanto o frio da noite e o calor de sua proximidade criam um paradoxo que me deixa sem palavras.

— Você tem fases... assim como a lua. E eu serei paciente e apreciarei cada uma delas — Henrik diz, o sorriso em seus lábios revelando uma suavidade que eu não esperava. Suas palavras carregam uma promessa implícita de aceitação

Apenas retribuo o sorriso, um gesto pequeno e contido, mas que parece suficiente para ele naquele momento. Enquanto nossos olhares se encontram, tento, em silêncio, trazer à tona a imagem de Yasser, a figura enigmática que antes habitava meus pensamentos com tanta intensidade. No entanto, percebo que sua sombra já se desfez nas brumas da noite, como um sonho distante que se esvai ao amanhecer.

Talvez, penso enquanto permaneço ali, diante de Henrik, seja mesmo a hora de permitir que Yasser desapareça por completo. Será que a lacuna deixada pela sua  ausência  era um abismo insondável. Aquele amor visceral, que outrora me preenchia por completo, agora se manifestava como uma ferida aberta, pulsando a cada lembrança.

 A impossibilidade de vivenciar novamente aqueles instantes de cumplicidade e paixão me levava a uma constante reavaliação do passado. O Yasser por quem me apaixonei era, em certa medida, uma construção mental, um ideal que se desfez diante da dura realidade da perda.

Dança Com o DestinoOnde histórias criam vida. Descubra agora