Capítulo 1: O espelho no sótão

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Clara nunca gostou do sótão. Havia algo naquela parte da casa que sempre a fez se sentir desconfortável, como se o ar ali fosse mais pesado e o silêncio, mais opressivo. No entanto, em uma tarde chuvosa, quando as gotas batucavam nos vidros das janelas e o trovão ecoava ao longe, ela se viu subindo as escadas rangentes que levavam ao sótão. Talvez fosse a monotonia do dia, ou talvez a sensação inexplicável de que algo a chamava. O sótão era um lugar caótico, cheio de caixas velhas, móveis empoeirados e memórias esquecidas. Clara percorreu os olhos por aquele amontoado de coisas, sem saber ao certo o que procurava, até que algo, escondido em um canto escuro, chamou sua atenção.
Lá estava ele: um espelho grande, empoeirado e com a moldura de madeira escura ornamentada. Era estranho que ela nunca tivesse notado aquele espelho antes. Aproximando-se hesitante, Clara passou a mão sobre a superfície, limpando parte da poeira. Foi então que percebeu as rachaduras.
As rachaduras formavam uma teia de aranha no vidro, como se o espelho tivesse sofrido algum impacto forte, mas curiosamente, a imagem refletida não parecia quebrada. Mesmo através das rachaduras, ela conseguia ver o próprio reflexo, mas algo estava diferente. Era como se os olhos que olhavam de volta para ela estivessem cheios de segredos que ela mesma desconhecia.
Um arrepio percorreu sua espinha quando, por um breve instante, ela viu algo mais. Um vulto, uma sombra, uma presença que não deveria estar ali. Mas quando piscou, o espelho voltou a mostrar apenas sua imagem, solitária e confusa inquieta, Clara tentou afastar a sensação estranha e se convenceu de que não havia visto nada. Talvez fosse apenas a imaginação pregando peças em sua mente, influenciada pelo clima tempestuoso. Mesmo assim, não conseguiu evitar se sentir atraída por aquele espelho de forma inexplicável.
Antes de sair do sótão, Clara se virou para dar uma última olhada no espelho. Desta vez, ela notou uma pequena inscrição na base da moldura, quase invisível sob a poeira acumulada. Aproximando-se mais uma vez, ela leu as palavras gravadas em uma letra antiga e quase apagada:
_"A verdade reside nas rachaduras da alma."
As palavras ecoaram em sua mente enquanto ela descia as escadas de volta à realidade. Mal sabia Clara que, naquele momento, uma antiga porta havia sido aberta, e o reflexo que havia vislumbrado era apenas o começo de algo muito maior e mais sombrio. Naquela noite, o espelho não saiu de seus pensamentos. E quando finalmente adormeceu, foi com a sensação de que algo estava observando-a, escondido nas sombras da noite, esperando o momento certo para se revelar. Clara acordou no meio da noite, suada e ofegante. A escuridão em seu quarto parecia mais densa, como se a luz da lua, que geralmente iluminava suavemente as paredes, tivesse sido engolida por algo invisível. Seu coração batia rápido, e ela sentiu uma sensação de desconforto que não conseguia explicar, e a lembrança do espelho no sótão retornou com força total, como um intruso em seus pensamentos. Ela tentou afastar a imagem da cabeça, mas o reflexo rachado parecia gravado em sua mente, insistente e persistente. Decidida a não ceder ao medo, Clara se levantou, com a intenção de tomar um copo d'água para clarear os pensamentos. Quando abriu a porta do quarto, o corredor estava mergulhado em uma penumbra inquietante. As sombras pareciam se alongar e se mover, como se estivessem vivas. Ela desceu as escadas, cada passo ressoando na casa adormecida. Ao passar pela sala de estar, algo a fez parar subitamente. Sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Naquele momento, o relógio de parede parou. O tique-taque constante e reconfortante se transformou em um silêncio profundo, quase palpável. O silêncio não era apenas a ausência de som, mas uma presença, como se a própria casa estivesse prendendo a respiração.
Sentindo a boca seca, Clara forçou-se a continuar até a cozinha. Mas ao virar o corredor, um som suave, quase inaudível, fez com que ela parasse novamente. Era um sussurro, fraco e indistinto, como o farfalhar de folhas secas ao vento. Não, não era o vento. Era algo mais próximo, mais íntimo. Clara virou a cabeça lentamente em direção ao som e seu coração quase parou quando viu algo no final do corredor. Por um instante, teve certeza de que viu uma silhueta, uma figura alta e indistinta, parada ali, observando-a. Mas quando ela piscou, a figura havia desaparecido, deixando-a sozinha com a escuridão e o silêncio opressor. Tentando racionalizar o que tinha visto, Clara correu para a cozinha e rapidamente encheu um copo d'água. As mãos tremiam enquanto ela bebia, tentando acalmar os nervos. Porém, mesmo após se acalmar, a sensação de estar sendo observada não desapareceu. Decidida a confrontar seus medos, Clara retornou ao sótão, desta vez com uma lanterna em mãos. As escadas rangiam mais alto, como se protestassem contra sua presença. Quando chegou ao topo, ela parou diante da porta do sótão, hesitante. A maçaneta estava fria ao toque, quase gélida.
Ela abriu a porta lentamente, a lanterna iluminando o interior escuro. O feixe de luz tremia um pouco, refletindo seu estado de espírito. Clara entrou e dirigiu a lanterna diretamente para o espelho. Lá estava ele, no mesmo lugar, imóvel e inofensivo... ou quase.
Enquanto se aproximava, Clara percebeu que o ar ao redor do espelho parecia diferente, mais denso, como se um campo magnético invisível estivesse em torno dele. Ela sentiu uma leve resistência ao se aproximar, como se o espelho estivesse tentando repelir sua presença, mas a curiosidade a empurrou para frente.
Ao se ajoelhar diante do espelho, Clara notou algo que havia passado despercebido anteriormente. Nas rachaduras do espelho, algo parecia brilhar fracamente, como um reflexo de luz em um pedaço de vidro quebrado, mas mais profundo, mais sinistro. Ela tocou a superfície do espelho, e uma onda de frio atravessou seu corpo. Subitamente, as rachaduras começaram a se mover, como se tivessem vida própria, espalhando-se lentamente pela superfície do vidro. Clara recuou, seu coração martelando no peito. O reflexo no espelho distorceu-se, e por um breve momento, o rosto do homem apareceu de novo, mais nítido desta vez. Ele parecia estar gritando, mas não havia som. Clara se levantou, sentindo que o espelho estava sugando sua energia, sua vontade. Virou-se para sair, mas antes de alcançar a porta, uma palavra ecoou em sua mente, clara e inconfundível, como se fosse sussurrada em seu ouvido:
_*"Ajude-me."*
Ela congelou. Nunca esteve tão aterrorizada em toda a sua vida. Não havia ninguém.

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