PRIMEIRA PARTE

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Valentina estava sentada na poltrona da sala. Vez ou outra observava o quadro em branco na parede, o qual ela nunca tentou preencher com alguma pintura ou simplesmente trocar por alguma outra coisa. Na televisão de tubo a sua frente passava o programa de arte, em que todos os dias era apresentada uma obra diferente, desde as antigas às contemporâneas. Ela roía as unhas, até o ponto em que não tinha mais o que roer.

No programa, a pintura da vez era “Saturno devorando um filho”, de Goya. No quadro, um homem velho e de olhar doentio e perdido, agarra com as unhas cravadas o torso de seu filho, sendo que este já não possui cabeça, e lhe falta um braço. Saturno, o deus do tempo, parece querer acabar com cada pedaço daquele corpo sem vida, e engolir cada parte de seu possível algoz, ainda que este já não seja capaz de reagir. Ela acha aquilo bizarro, um retrato perfeito da mente doente do artista.

Enquanto mordia a pele dos dedos, embora não percebesse, Valentina rasgou um pouco mais fundo. Nisso escorreu uma mísera gota de sangue pelo indicador, e ardia. Poderia limpar na poltrona, mas não queria manchá-la. Por isso não via motivo para evitar lamber o próprio sangue e acabar com a sujeira.

Valentina usava um casaco marrom leve por cima da camiseta branca, pois era início da primavera, e ela não queria passar calor. Também não queria deixar de lado a elegância do inverno antes de ir para o trabalho.

Levantou, escovou os dentes, fez panquecas, bebeu suco de laranja e sentiu o gosto desconfortável da laranja se misturando com a pasta dental. Era realmente desagradável.

Saiu para a rua logo de manhã cedo, com o céu nublado e vários vasos de flores nas janelas e nas vitrines das lojas. Um entregador de jornais a cumprimentando e elogiando sua beleza, a comparando com as rosas que foram postas na entrada do restaurante.

Ela entrou no restaurante, foi direto à cozinha, onde seu avental estava pendurado num cabide. É a chefe daquele lugar. Os funcionários, incluindo Téo, um jovem moderno e de teores revolucionários, chegam a ela e pedem auxílio nas questões que eles mesmos não conseguem resolver por conta própria, e Valentina, de forma exigente, mas sem nunca deixar de ser gentil, os ajuda.

Tentou explicar a Téo que o fato de a marca de faca ter mudado não deveria influenciar no corte. Por isso pegou a faca nova, de lâmina tão afiada que poderia fatiar uma folha de papel apenas ao deslizar por ela. Pegou uma tábua de cortar e um tomate e começou a fatiá-lo. A experiência era tanta que nem precisava olhar para o legume para o pinicar – podia cortar e olhar para o lado ao mesmo tempo.

Num leve deslize, a faca arrancou a pele de sua mão. A película ficou ali, junto às fatias de tomate. Téo preocupou-se com sua chefe e tentou ajudá-la, mas segundo ela não tinha nada demais. Acidentes de cozinha acontecem. Valentina foi à pia para lavar o sangue, enquanto Téo descartava o tomate com pele humana para uma sacola plástica. Mas ao invés de jogar a sacola no lixo, ele a deixou sobre a mesa e saiu da sala, pois um dos outros funcionários chamou pelo seu nome. 

Valentina estava sozinha. Os garfos bem postos nas gavetas, as colheres lavadas num recipiente da pia. Na mente dela, curiosidade. Seria bom? Ela pegou o saco com tomates e procurou pelo aperitivo em meio aos pedaços cortados e vermelhos de tomate, até achar a película de pele entre eles. Pôs a película na boca e esfregou com a língua no céu dela, sem mastigar. Descobriu que ela mesma tinha um sabor agridoce e único.

Era como se fizesse cócegas do próprio sistema límbico. Estava distraída demais para perceber os sentidos externos do ambiente, distraída demais para perceber que Téo a chamava. Apenas despertou quando ele a cutucou no ombro. Tinha trazido um band-aid para ela cobrir o ferimento, e ele mesmo ajudou a colocá-lo, antes de seguir limpando a mesa dos resquícios de sangue que haviam ficado nela.

Pelo resto da manhã, ensinou os trabalhadores a fazerem uma receita nova com legumes que ela aprendeu com sua avó espanhola. Haviam poucos clientes para serem atendidos, mas os poucos que vinham tinham um apetite voraz, e repetiam os pratos. Pediu que alguém lavasse um dos pratos no lugar dela, porque a ferida aberta debaixo da proteção doía. Foi um dia caloroso e um tanto cansativo.

No meio da tarde, chegou o fim do expediente. Téo contou que tinha alugado uma bicicleta, mas por engano lhe trouxeram duas. Ele ofereceu a extra e ela aceitou. Os dois saíram pedalando enquanto o restaurante estava fechando. Nas ruas as flores possuíam um tom mais vibrante do que jamais tiveram, e seus caules se esparramaram pelas mesas de madeira nas quais famílias recebiam lanche de um garçom, e as suas folhas possuíam um verde escuro mais vivo do que qualquer outro.

Um vendedor segurava um buquê de rosas, distraído enquanto um dos clientes contava o dinheiro para pagá-lo. Percebeu a bicicleta vindo em sua direção e saltou para a calçada. Téo riu enquanto cumprimentava seu amigo florista, e este acenou de volta. Os dois ciclistas chegaram à casa da chefe e se despediram um do outro. Téo saiu pedalando.

Valentina pegou as chaves de sua bolsa e abriu a porta da frente. Entrou na sala, com a mesma poltrona de frente para uma televisão de tubo e o quadro em branco ao lado da televisão. No espaço entre a poltrona e a parede, uma caixa cheia de livros velhos e deles vinha um cheiro sutil de poeira. Decidiu limpá-los antes de fazer qualquer outra coisa, então pegou um pano e um produto químico. Era dia vinte e três de setembro.

Após isso, foi ao banheiro, onde a pia permanecia no modelo que tinha quando morava na Espanha com seus pais, embora agora estivesse na Argentina, e tivesse que aceitar as mudanças das coisas. Entrou no box do chuveiro, despiu-se, pôs as roupas no cabide e deixou a água gelada cair e se espalhar pelo seu corpo nu. Confessava querer terminar o mais rápido possível para realizar a ideia que havia tido no caminho. A água, sem querer, arrancou o band-aid, e o ferimento queimou, como se tivesse com a mão encostada numa panela quente, e alguma coisa a segurasse para não desencostar. Ela desligou o chuveiro, vestiu-se rápido e apressou-se para procurar outra coisa que pudesse proteger seu ferimento.

Saiu para a sala e passou para a cozinha. Lá havia um balcão ao lado da pia, com vários recipientes com temperos para o uso nas receitas. Entre eles, um pote de açúcar.

Abriu o armário e retirou um novo band-aid para colar sobre o músculo exposto de sua mão, e isso fez. Em seguida retirou os ingredientes para preparar a mesma receita que ensinara no restaurante durante a manhã. Sentia saudades da sua terra natal, embora também amasse o lugar novo e que também lhe tinha sido fiel por anos.

Pela pequena janela próxima ao teto, adentrava a luz da tarde. E ela manuseava os ingredientes com cuidado. Cortava a cenoura em rodelas com toda a delicadeza do mundo, para evitar que um evento parecido com o de algumas horas atrás se repetisse de novo. Cortou um chuchu e uma beterraba em cubos, depois refogou um generoso dente de alho, e o vapor cheiroso se espalhou pela cozinha.

Estando tudo bem cozido, estando tudo bem salgado, na medida certa, apareceu uma ideia em sua cabeça. Por que não adicionar açúcar na receita? 

Terminou o preparo com legumes, e, além disso, fez macarrão ao molho para acompanhar. Seguiu para a sala, sentou na poltrona e, com o controle remoto, ligou a televisão de tubo para assistir a algum programa que lhe interessasse.



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