QUARTO CAPÍTULO

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Já devia ser bem o sétimo dia em que se segurava para não repetir o hábito mais uma vez. Mais um dia em que parecia estar dentro daquela emoção repulsiva. Amargo era a melhor palavra para descrever o sabor que sentia, não só na língua, mas em seu âmago. O tato ao tocar naquela cama molhada de suor, a poeira da janela quando encostava o braço na superfície. 

Na cozinha, abriu a geladeira em busca de água gelada para beber, mirando com os olhos o nada, de uma mente inabitada. Ficou paralisada por pensamentos, de uma saudade de sabe-se lá o quê. Dessa vez não sentiu a falta de um parente. Escorado na pia, um cabo de vassoura avulso; nas gavetas um facão tão afiado quanto aquela faca tomada das mãos de Téo; no fogão, um isqueiro largado.

Decidiu sair dali. Pegou a jarra e o copo e deu meia volta para a sala, saindo daquele ambiente que lembrava a última vez que repetiu o hábito. Era a primeira vez que faltava ao trabalho, desde que tudo começou. No dia anterior, tinha trazido o telefone para casa, pois ele nunca teve utilidade no restaurante mesmo. Arrastou uma mesa de seu quarto e o deixou sobre ela, perto do quadro em branco, ao lado da televisão.

Precisava dizer o que se passava em sua cabeça para alguém, de forma que essa pessoa ajudasse. Pegou o telefone, discou o primeiro número do contato dos pais. Pôs o aparelho na orelha, discou o segundo, o terceiro, o quarto, e, na metade do caminho, sentiu algo que não sentia a anos: vergonha.

Afinal, como explicar aquilo para quem quer que fosse? Abandonou o aparelho, andou de um lado ao outro na sala, e sem perceber passou de volta à cozinha. Escorou a si mesma na pia. Pegou a faca aguda na gaveta.

Enterrou a ponta da faca na parte de cima da panturrilha, logo atrás do joelho, e, o choque dos nervos a ordenava que parasse, mas continuou. Se a faca apontava para o chão, deu um giro de noventa graus que cortou os tendões e rasgava cada um dos ligamentos musculares. Era uma dor terrível, e ela quase desmaiou por causa dela, mas ainda assim despertou, como de um sonho, e continuou descendo a faca quente. A alta temperatura cauterizava a abertura assim que passava pelo interior da cante.

A lâmina já tinha chegado ao tornozelo, e um vapor de panturrilha queimada subia até suas narinas e a enjoava. Teve ânsia de vômito, mas seguiu em frente. Desenterrou a faca da perna e subiu com ela até atrás do joelho, para cortar o outro lado. Mas dessa vez, o metal que compunha a arma havia esfriado, e perdeu a propriedade cauterizadora.

Sem querer desapoiou a mão da pia e caiu ajoelhada no chão. Teve esforço de segurar na borda da pia e se puxar para cima. Aqueceu a  lâmina no fogo ainda aceso, até ela ficar alaranjada.

Fez o mesmo processo de novo e a panturrilha deslocada da perna escorregou para trás, no piso seco da cozinha. Um cheiro de sangue seco e músculos fundidos.

Tirando as mãos da pia, escorregou para a esquerda e bateu com as costas na parede ao lado e a coluna ardeu, a lombar se desgastava feito tivesse carregado dez tijolos nas costas por um dia inteiro.

Ainda assim, suas esperanças eram mastigar  alguma coisa, mesmo que transbordasse angústia. Por isso, agarrou a panturrilha e levou aos dentes para morder aquela carne crua e de liga que parecia borracha vermelha. A cada vez que enterrava os dentes nos tendões, uma lágrima se derramava de seus olhos. A cada vez que lixava a pele rosa pálida com a língua, as lágrimas escorriam pelo queixo e caíam pelo ar e batiam no busto, para escorrer no abdômen e molhar a braguilha da calça. Subiu um arrepio desde a sua espinha à parte detrás do pescoço.

Precisava fazer as necessidades, mesmo com o estômago cheio, empanturrado. Por isso teve de segurar-se na nas bordas da pia e puxar-se para cima, porque a ausência de músculos numa das pernas a impedia de ficar em pé. E nisso ela teve se andar usando a superfície gelada de apoio, até chegar no cabo de vassoura, e colocá-lo debaixo das axilas para que servisse de bengala. Mas ainda assim, pela falta de costume, caiu novamente, e levantou novamente, usando o cabo contra o chão.

Caminhou como um aleijado para o limiar, e depois pela sala, e se escorou na parede, com uma perna só, para poder abrir a porta do banheiro, e entrar. 

Abaixou o shorte e sentou na privada, sentindo a porcelana gélida tocando a pele detrás das pernas e das nádegas. Encostou a carne exposta na superfície e a afastou dela. Expulsou a urina alaranjada e cheia de sódio, mas pela má posição, quase sentada e quase em pé, a urina escorreu pelas pernas e molhou o chão, e se espalhou para a parte mais baixa, e desceu na direção do ralo. Essa simples situação causou-lhe desespero, mas não sabia o motivo. Aquele líquido salgado ainda escorria, mas dessa vez para dentro do vaso sanitário. Sem levantar, cobriu o rosto com as mãos suadas e tentou botar para fora um choro, sem sucesso. Só queria poder desistir. Só queria poder resetar a própria vida e, numa outra chance, reviver cada momento feliz, corrigir cada erro em vão.

Depois de muito tempo inerte, veio à sua mente a sensação de que tudo aquilo não existia, mas existia, de que ela mesma não era real, mas era. Ser verdade era inerente à situação. Por essa razão, teria de se erguer para fora um dia.

Pegou a vassoura para usá-la de bengala, a encaixou debaixo das axilas e se ergueu para cima, pisando na cerâmica molhada do banheiro. Deu passos para o limiar da porta e saiu para a sala. Ao olhar de relance para o rastro atrás de si, percebeu ter deixado pegadas de urina por onde passou. Mas não importava. Queria deitar depois de tudo. Deitar e apagar.

Entrou no quarto, soltou a bengala e caiu de cara na cama, batendo com a clavícula na quina, e isso lhe gerou um hematoma futuro. Mas ao invés de pensar nisso, apenas arrastou-se para o colchão, e lembrou de subir o short de volta para não dormir nua, pois sujar os lençóis de urina já era o suficiente. Fechou os olhos com o rosto escorado no travesseiro, e fingiu não existir.

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