TERCEIRO CAPÍTULO

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Insípido, vazio e desconfortável. Era isso que aparentava ser o mundo ao seu redor, quando ela acordou em sua cama. Tinha dormido com a cara no travesseiro, com os cabelos desgrenhados e um fedor pútrido emanando da própria garganta inflamada. Levantou a força, fora daqueles lençóis brancos, e o lado de fora que via pela janela tinha nuvens de um dia claro.

Seguiu ao limiar da porta e saiu para a sala, com o próprio corpo arrastado. No calendário da parede, era indicado ser dia vinte e oito de setembro. Ela pegou o controle no braço do sofá e ligou a tv. O quadro da vez era de um vaso branco e flores cinzas dentro dele. Mas, ao passar de canal, achou que sua televisão tinha sido trocada durante a noite por uma em preto em branco, mas isso não importava. Nada importava.

Mesmo que tivesse dormido a noite inteira, tinha a sensação de não ter dormido nem um segundo. A frente da cabeça sentia como se tivesse respirado água. Seguiu para a cozinha. Lá, uma vassoura escorada na geladeira, e as gavetas de talheres abertas, mostrando garfos, colheres e um facão tão afiado quanto aquele do restaurante.

Decidiu fazer um sanduíche para o café da manhã. Pão com tofu. Mas quando pôs aquilo na boca e mastigou, em breve cuspiu, pois qualquer outro tipo de comida parecia não ter gosto. Era como se comer pão fosse comer isopor. Depois disso piorou, e ela passou a ter nojo da comida, e toda vez que mastigava contra sua vontade, engolia a força aquela massa de lixo em sua garganta. Percebeu o quanto era miserável.

Percebeu estar na hora de ir ao trabalho, e nem ao menos tinha tomado banho. Estava imunda. Foi ao banheiro, e ao seguir em frente, bateu com o fêmur na privada. O estado de inatividade de suas veias se tornaram numa taquicardia, que a fez voltar a cabeça para trás e duvidar se estava mesmo sozinha naquela casa. Lembrou ter trancado bem a porta de entrada e a janela do quarto, e a janela da sala era pequena demais para que um ser humano passasse.

Era um dia quente de primavera, embora todas as cores tivessem decidido se inibir. Ela usava um short e uma camisa leve por causa do calor. Tirou os dois, e ficou apenas de sutiã, pois estava exausta o suficiente para não retirá-lo. Assim tomou banho.

A água transparente permeava sua pele e lavava o suor da noite, antes de seguir seu rumo para o ralo.

Assim, após vestir-se novamente com a mesma calça do dia anterior, deixada pendurada no cabide, seguiu seu rumo. Desligou o chuveiro. Saiu para a sala. Saiu para a calçada. Trancou a porta com as chaves. Guardou as chaves na bolsa. Apoiou a bolsa no ombro. Seguiu rumo ao trabalho. Assim foi sua manhã no dia vinte e oito, e também no dia vinte e nove, e também no dia trinta.

Aquele ímpeto não saía da sua cabeça em nenhum momento. Tentou comer de tudo, e, inclusive ir ao mercado e passar pelos corredores com os quais não tinha costume, e experimentar produtos que nunca se habituou. Era sua única saída.

No restaurante, durante a pausa para refeições, das nove e quarenta e cinco às dez horas, ela chegou retirou da gaveta a sacola, cheia de legumes, enquanto Téo perguntava o que ela estava planejando fazer, e ela explicava sobre a receita feita com nabo branco e feijões cinzas. Ele se dispôs a cortar os vegetais, enquanto Valentina punha água na panela e sal na água, e a panela no fogão. O intervalo de quinze minutos foi suficiente para cozinhar os legumes, e, quando o restaurante abriu, e começaram a aparecer clientes com seus pedidos, os outros funcionários apareceram na cozinha para preparar as receitas exigidas. Valentina continuou temperando o prato para si mesma, pois seu estômago vazio parecia digerir a si mesmo, de forma que o ácido raspava as suas paredes. Vez ou outra tinha um espasmo na barriga, que se encolhia, tentando procurar algo.

Enfim terminou tudo, derramou o preparo num dos pratos, na beirada da pia, e comeu ali mesmo. A situação não se resumia à falta de apetite. Resolvia que tinha de se alimentar de uma forma de outra, punha aqueles grãos de feijão ou pedaços de nabo na boca, mastigava contra a própria vontade, como se sua mandíbula estivesse cansada e engolia toda aquela massa lisa que escorria por dentro da garganta e passava pelo esôfago. Isso tudo apenas para que, alguns minutos depois, aquele vômito subisse de volta pela traquéia, sensibilizasse a úvula e ela cuspisse na pia. A parte de dentro ficou inteira melada, encardida por um cheiro podre. Ela ligou a torneira para lavar aquela imundice, mas a ânsia retornou e dessa vez provocou apenas um líquido transparente e linfático, se misturando a água.

A situação foi parecida nos dias que se seguiram, mas ainda assim segurou-se para não repetir aquilo. Em casa, sentada na poltrona, com a televisão desligada, preenchia os relatórios e os gráficos de uso do restaurante, enquanto aquela coisa a persuadia para destruir-se. Era algo diferente de uma voz, porque não haviam palavras que se pudessem à palavra dela, nem ordens ou expressões, mas, na verdade, um pressentimento, uma sensação de fundo para todas as outras ideias que surgiam em seu consciente. Não suportou ficar com essa coisa martelando tudo que fazia, e, por isso, agarrou o controle e ligou a televisão. Estava sem sinal, com aquele chiado irritante e distorcido que espalhava o ruído pela sala inteira.

A exaustão chegou à superfície e transbordou, mesmo não tendo movimentado o próprio corpo o dia inteiro. Apenas queria livrar-se daquilo, qualquer que fosse o meio utilizado.

Por esse motivo, levantou, pôs o casaco marrom em volta do torso, deixou a tv sem sinal com seu barulho incontrolável, abriu a porta. Ela não queria dar um fim a angústia na próxima estação, ou semana que vem, e nem mesmo no amanhã. Na verdade, queria uma solução agora, nesse instante. Era essa resolução que buscava enquanto andava pelas ruas, sem ter trancado as portas de casa. Passou pelas ruas em preto e branco e suas plantas cinzas, com serrilhas e uma cor desbotada. As pessoas perceberam o enfaixamento em seu braço esquerdo, e o enfaixamento no braço direito, mas Valentina buscava não encarar nos olhos de ninguém, como se os seres humanos não possuíssem rosto.

Chegou ao parque central, bem no local onde existia o muro baixo-circular e um banco no centro. As folhas escuras do jardim pareciam quase negras. Sentou-se no banco ao lado da estante de livros públicos e esperou melhorar. Imaginou que estar no mesmo local de antes lhe traria algo bom. A luz branca incessante do céu parecia mais clara e insuportável do que nunca. Isso era desconfortável, vazio e insípido.


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