Prólogo

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Alana estava cansada de contar os dias, mas o hábito havia se tornado um ritual inescapável. Era como se a contagem do tempo fosse a única coisa que ainda a ligava ao mundo de antes, ao mundo onde as semanas tinham algum significado, onde o som do mar era um alívio e não um lembrete constante de sua solidão. Oito meses, ou algo em torno disso, desde que tudo começou a desmoronar. O céu, antes tão familiar, agora parecia uma cúpula opressiva de nuvens pesadas, refletindo o estado do mundo abaixo. Os ventos que outrora traziam o cheiro do sal agora carregavam apenas o fedor de algo podre, algo que Alana preferia não identificar.

Ela apertava o rádio contra o peito, um peso leve, mas significativo, sua única conexão com qualquer coisa ou alguém além dos ecos de seus próprios pensamentos. O som das ondas quebrando contra a praia era o único ruído constante, um pano de fundo que só amplificava o silêncio ao seu redor. Violet. O nome era uma anomalia, uma cor vibrante em um mundo que havia perdido quase todas as suas tonalidades. A voz que vinha através do rádio era a âncora que a mantinha à beira da sanidade, a promessa de que, em algum lugar além dessa prisão de areia e concreto, havia mais do que apenas sobrevivência.

A cidade — um lugar que já foi vivo e pulsante, agora uma sombra de si mesma — não oferecia mais o consolo do conhecido. Era um cenário de pesadelos, cada esquina uma nova ameaça, cada ruína um lembrete cruel do que foi perdido. Mesmo assim, Alana caminhava, seus passos determinados, mas pesados, com um objetivo tão nítido quanto incerto: encontrar Violet, encontrar a estação de onde aquela voz vinha e, talvez, com um pouco de sorte ou milagre, encontrar algo que pudesse chamar de casa novamente.

O rádio crepitava de vez em quando, uma interferência que ora parecia provocação, ora parecia esperança. Às vezes, Alana se perguntava se Violet era real ou apenas uma alucinação criada pela solidão e pela necessidade desesperada de acreditar que não estava completamente sozinha nesse fim de mundo. Mas então a voz surgia, baixa e clara, atravessando as ondas de estática como uma lâmina. Era reconfortante e, ao mesmo tempo, perturbadora, porque embora Alana pudesse ouvir Violet, a reciprocidade não era garantida. Havia dias em que Violet não respondia, deixando Alana pendurada no silêncio, e nesses momentos, o medo de estar falando apenas com a escuridão aumentava como uma maré incontrolável.

A cada nova tentativa de contato, a ansiedade crescia. O que aconteceria se a voz simplesmente parasse? E se, um dia, ao ligar o rádio, tudo o que ela ouvisse fosse o zumbido interminável da estática, como tantas outras estações mortas que ela já havia vasculhado? Essa possibilidade a aterrorizava mais do que as criaturas que agora habitavam as sombras da cidade. As ruas, outrora movimentadas, eram um labirinto de memórias quebradas, e o rádio, com suas promessas de uma voz humana, era o único mapa que ela tinha para navegar nesse caos.

Apesar disso, havia algo em sua jornada que a impelia a seguir adiante, um impulso quase primitivo de buscar, encontrar e talvez, só talvez, reconquistar uma fagulha do que havia sido roubado. Ela não sabia o que esperava encontrar ao final desse caminho — se era segurança, companhia, ou apenas uma resposta para o porquê de tudo isso. Mas, enquanto houvesse a voz, enquanto Violet falasse, Alana sabia que não poderia parar. Ela precisava seguir em frente, mesmo que a cada passo o chão se tornasse mais incerto e o horizonte, mais distante.

— E aí, garota? Lembrou de roubar um protetor solar em vez de só revistas em quadrinhos? — ouviu a voz cheia de interferência ecoando do objeto que apertava como um amuleto da sorte contra o peito. Foi como se, por um instante, os monstros que se amontoavam ao redor de sua mente ansiosa fossem afugentados. — Alana? Você está aí?

Alana sorriu, não havia percebido que demorou a responder, se deu conta ao ouvir a voz, agora inquieta, de Violet do outro lado.

— Oi! Bom... Eu não peguei só revistas em quadrinhos; estava atrás de analgésicos. Essa dor de cabeça está acabando comigo! — reclamou, aborrecida, no entanto, havia humor em sua voz. — E tecnicamente não é roubar se não tem mais leis!

— Achei que você não ia responder, me deu um susto. Eu tenho medo de sair da mesma frequência de rádio que você. Onde está agora? — perguntou a voz do rádio, cujo tom carregava uma sombra de alívio. — Você só deve estar com dor de cabeça por causa do sol.

— Pare de ser tão obcecada com o sol, Violet! Eu estou bem! E hidratada! — cortou a garota, apertando o botão vermelho na lateral do rádio para falar por cima de sua voz. — Não saí da orla nem por um segundo. Desde ontem estou caminhando ao lado do mar, acho que o som das ondas mascara meus barulhos e o cheiro da maresia confunde os mortos. Apesar de que eu devo estar cheirando pior do que eles!

— Você tem muita coragem de acampar em plena praia a céu aberto. E se uma daquelas coisas te fizer uma visita na sua barraca ou achar que você é um lanche? — Violet perguntou, e, apesar de ser uma notória piada mórbida vinda dela, piada essa que já fazia parte do seu repertório de personalidade pessimista e eventualmente caótica, dava para ver uma espécie oculta de temor naquela pergunta.

Ao se dar conta disso, Alana percebeu que, até certo ponto, se sentia familiarizada com Violet, ao ponto de reconhecer sua hesitação na voz. Não sentia exatamente medo dos mortos. Alana era bastante consciente das próprias intenções vivendo naquela ruína de mundo, desarmada, apenas fugindo dia após dia. Sentia-se covarde demais às vezes, quando a ideia de subir no alto de um dos prédios da beira da orla e se atirar de lá para mergulhar em um fim rápido e indolor ascendia sobre sua cabeça como uma lâmpada. Ao mesmo tempo, sacudia a cabeça e espantava a ideia para longe. Sabia que não tinha pelo que viver, mas não significava necessariamente que gostaria de morrer, e com certeza não gostaria de virar comida de morto-vivo. Ainda assim, parecia o final mais plausível que a maioria dos humanos já chegou a ter nos últimos meses. Não sabia se chegaria a tentar lutar caso o momento chegasse.

— Alana? — Mais uma vez, a voz a tirou dos seus devaneios macabros. — Você ainda está aí?

— Perdão... — apertou o botão lateral, se apressando em responder. — Bom, acho que por enquanto minha estratégia de sobrevivência está dando para o gasto. E não me parece uma boa ideia ir à cidade de novo. Eu fiquei dois dias presa naquela cafeteria por causa de um bando de cabeças-ocas desfilando lá na frente, só querendo um pedacinho de mim.

Veio o silêncio. Alana piscou os olhos, ansiosa, e então deu alguns tapinhas no rádio.

— Pedaci... arm... velocid... — Palavras desconexas começaram a sair do rádio, e Alana imediatamente parou de andar para tirar a mochila do ombro e abrir, afastando seu casaco e a garrafa de água em busca de pilhas novas. Mas não tinha nenhuma além das que já estavam pintadas com um marcador vermelho, indicando que estavam descarregadas. Estava fora de cogitação tirar as pilhas da lanterna. — Alana? Pare de me dar sustos!

Alana tomou o rádio em mãos, deixando a mochila aberta a seus pés.

— Vio, precisamos parar de falar agora! As pilhas estão acabando. Olha, acho que vou acampar pela cidade hoje... Talvez eu encontre um pacote de pilhas e um lugar quente pra dormir! Eu falo com você pela manhã — se apressou em dizer, enquanto recolhia seus pertences e olhava ao redor, ansiosa. Parar de caminhar sempre lhe causava uma aflição tremenda. — Até o amanhecer, madame enxerida.

— Faça o favor de não morrer até lá. Até o amanhecer, presidente da nerdolândia. Cambio e desligo!

Então a frequência acabou, e Alana prontamente desligou o rádio no botão giratório e abaixou a antena, guardando-o na bolsa e jogando-a sobre os ombros novamente.

Bem-vinda de volta, solidão.

Ela olhou para a cidade à sua frente, as sombras das ruínas se estendendo como braços prontos para engoli-la. A maré estava subindo, e a luz do crepúsculo dava às ondas um brilho quase fantasmagórico. Alana puxou o capuz sobre a cabeça, protegendo-se do vento frio que começava a soprar do mar. A solidão podia ser uma companhia cruel, mas era uma que ela já conhecia bem demais. O desafio agora era continuar avançando, um passo de cada vez, enquanto o mundo ao redor continuava a se desfazer. Mesmo com todos os riscos, algo dentro dela se recusava a ceder. Havia uma voz do outro lado das ondas de estática, e enquanto ela pudesse ouvi-la, enquanto houvesse uma chance, por menor que fosse, de encontrar Violet, Alana sabia que iria seguir em frente.

Ela respirou fundo e começou a caminhar novamente, os olhos fixos no horizonte, onde a cidade e o mar se encontravam em uma linha indistinta. A noite estava chegando, e com ela, todos os perigos que o escuro trazia. Mas a cada passo, Alana sentia um novo tipo de força surgir dentro de si. A jornada estava longe de acabar, e enquanto houvesse caminho a seguir, ela não permitiria que a escuridão a consumisse.


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