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MIGUEL


    Não consigo lembrar da última vez em que senti tanto frio na vida. A sensação congelante atinge meus pés em toques fantasmagóricos que roçam de leve na minha pele, enroscando nos meus dedos e tentando subir pelos meus tornozelos. Puxo as pernas para debaixo do cobertor e lanço um olhar de relance para a minha barraca. Ou melhor: Para a pilha de pedaços de lona e vigas de metal que deveriam ser minha barraca.

     O monte de destroços parece caçoar de mim, chacoalhando com a brisa como uma pessoa faz ao tentar segurar uma risada.

     "Você consegue montar em cinco minutos!", disse a moça da lojinha de produtos de segunda mão que me vendeu a barraca por 150 pesos, e lembrar disso me faz querer xingar baixinho.

     Consegui sim montar em cinco minutos, mas a mais leve brisa do deserto reduziu minha linda barra à entulhos. O chão duro e pedregoso não deu sustentação suficiente para que ela ficasse em pé, e agora estou aqui, deitado em um dos pedaços da lona azul e tremendo de frio.

    Halley deve passar em quatro horas.

    Foram meses de espera.

    Depois semanas e dias.

    E agora que são horas, a contagem regressiva nunca pareceu tão lenta. Os remédios me fazem dormir cedo, e é provável que eu já estivesse dormindo se não posse pela garrafa de café — Agora pela metade — Que descansa em um dos cantos da lona azul, impedindo que ela enrole.

     Cada passo que dei pelo deserto escuro e silencioso reforçava cada vez mais a ideia de que ir tão longe para ver o cometa não passava de uma maluquice.

    Eu sabia que era loucura.

    Queria fazer uma loucura.

    E agora aqui enquanto olho para o céu, tremendo de frio e com o estômago vazio, não consigo pensar numa realidade em que não estivesse nesse exato lugar, porque nunca vi nada tão lindo em toda minha vida.

    O céu é... Mágico. Magnífico.

    Meu fôlego se esvai, minhas retinas pinicam e latejam com a falta do colírio e pela lentidão entre um piscar e outro, mas mesmo assim não consigo parar de encarar o céu.

     Há mais estrelas do que jamais vi em toda minha vida. Elas brilham contra o céu azul em uma luz branca e intensa, mas assumem brilhos esverdeados, azuis e avermelhados quando foco com mais precisão em cada um delas. É como se as cores estivessem disputando pelo controle, engolindo umas às outras e dominando por milissegundos, antes de serem engolfadas por uma nova cor pouco tempo depois.

     Minha visão traidora falha algumas vezes, embora nunca tenha enxergado com tanta clareza durante toda minha vida. O horizonte silencioso e rochoso do Atacama limita meu campo de visão, mas o infinito do universo parece prevalecer, me mostrando mais do que consigo absorver.

     Minúsculas estrelas cadentes cruzam o céu vez ou outra, sempre arrancando um leve arquejar de mim quando o pensamento de que talvez seja Halley me atinge, mas então lembro de que ele é maior, lento e infinitamente mais grandioso. Eu encaro as estrelas cadentes até que desapareçam no céu novamente, e mesmo que seja uma brincadeira boba de criança, imploro à todas elas a mesma coisa.

    O silêncio sobrenatural chega a ser ensurdecedor. Tão palpável ao meu redor quanto o frio. Tão presente à ponto de que cada respiração e leve movimento meu faça um som mais alto do que deveria, rasgando o silencioso e noturno véu da noite.

    Será que tenho tempo de tirar um rápido cochilo? Será que...

     — Merda, merda, merda! — O praguejar lamentoso e um tanto desesperado de alguém destrói com ainda mais facilidade o silêncio que meus breves movimentos sob o cobertor de lã tricotada. Eu sento na toalha improvisada de forma tão rápida e automática que minha pulsação vai às alturas por um breve momento.

    Percorro o deserto com o olhar, tentando encontrar o dono dos xingamentos de frustração e desespero. A surpresa por ter outro humano tão perto me atinge como uma facada, ainda mais quando lembro que escolhi essa parte desértica de um deserto que hoje não deveria estar tão desértico assim justamente para ficar sozinho.

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COMETA HALLEY [COMPLETO]Onde histórias criam vida. Descubra agora