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   — Você é daqui mesmo? — A sua pergunta não passa de um mero sussurro. É quase como se falássemos alto demais pudesse quebrar o clima aconchegante que a escuridão do deserto e as estrelas nos proporcionam.

    — Sim. Nascido e criado por aqui.

    — Ah. Eu nasci na Venezuela.

    Joaquim faz uma pausa, olhando para mim de relance. Nesse ângulo perpendicular, o nariz dele consegue ficar ainda mais proeminente.

    — O que faz tão longe de casa? — Questiono ao perceber que ele espera eu demonstrar curiosidade e queira saber mais sobre. Conheço-o a tão pouco tempo, mas já sei que ele adora tagarelar sobre os mais diversos assuntos, desde que a outra pessoa se mostre interessada em ouvir.

     E eu quero muito ouvi-lo.

    — Gosto de viajar. Já visitei a maioria dos países da América só Sul!

    — Você é rico, então?

    — Nah. Tudo que tenho está nessa mochila e o velho carro que herdei do meu pai.

    — Então como...? — Dou de ombros, deixando a pergunta em aberto.

    — Gosto de viver assim. Minha vida é um mochilão sem fim! — Ele ri como se isso fosse uma piada interna. Sua risada é meio anasalada de uma forma divertida. Estamos tão próximos sob o cobertor que consigo sentir seu hálito quente enquanto ele fala. — Arrumo uns trabalhos rápidos por onde passo pra conseguir o dinheiro pra gasolina e pra comida. Já trabalhei como frentista no Brasil, e o dinheiro deles é cheio de animais! Já lavei pratos da Bolívia e fritei bolinhos de restaurante no Suriname...

    — Não tem medo de viajar sozinho assim?

    — O medo faz parte. O desconhecido é cheio de variáveis, e para mim, o segredo é tirar proveito delas e ver novas oportunidades de continuar.

    — Me dê um exemplo. — Peço, porque todas as "variáveis do destino" para mim são meio mórbidas.

    — Bom, meu carro provavelmente vai parar de funcionar logo. Ele está com um barulho estranho e quase não pega se a bateria estiver fria, ou quando o dia está chuvoso. Se eu tiver dinheiro, posso mandar concertar! Ou quem saber eu compre uma bicicleta e siga viagem como um ciclista! Ou quem sabe eu siga a pé! Ou então entre numa caravana de ciganos ou em um circo...

    — Você é louco. — Bato meu ombro no dele. Esse é o primeiro contado físico que temos desde o aperto de mão.

    O corpo dele é quente, ossudo e firme.

    — Eu sei. Mas não me incomodo nem um pouquinho com isso.

    — Eu também não. — Sussurro, então rimos feito dois idiotas.

    Não lembro da última vez que ri de coisas tão bobas. Olho para Joaquim, mas solto um suspiro rápido ao perceber que não estou enxergando direito. O embaçar momentâneo me faz fechar os olhos e respirar fundo.

    Sinto ele se aproximar um pouquinho. Nossos ombros estão roçando um no outro agora.

    — Mas e você, Miguel?

    — O que tem eu?

    — O que te traz aqui?

    — Halley, ué.

    — O que te traz até o Atacama, sem telescópio e no lugar do deserto onde era menos improvável encontrar com outra pessoa?

    — Ouvi dizer que é um evento astronômico muito importante. E cheguei até essa parte do deserto por mero acaso. — Respondo, ainda com os olhos fechados. Isso não é mentira, mas também não é verdade por completo.

    — O cometa Halley foi o primeiro cometa período já comprovado cientificamente. Ele passa pela terra à cada 76 anos, antes de viajar pelo universo mais uma vez... — Joaquim começa, meio perdido nas informações fascinantes, mas sai do transe de forma brusca e eufórica logo em seguida: — Mas não tente desviar de assunto, Miguel! Ainda não respondeu minha pergunta.

    — Hum. — Grunho, batendo o ombro contra o dele de novo.

    Sei que vou acabar cedendo. Ele sabe disso também. Mas por enquanto, permaneço calado, respirando calmamente e com as pálpebras fechadas.

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COMETA HALLEY [COMPLETO]Onde histórias criam vida. Descubra agora