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    — Precisamos dar no pé antes que amanheça. Esse lugar fica muito quente durante o dia, Miguel.

    — Tudo bem. — Encolho os ombros, triste.

    Ainda faltam quase duas horas para amanhecer, mas já está bastante claro. O céu do leste está tomado por tons de um leve alaranjado, que aos poucos ganha lugar contra o azul escuro — Que até pouco tempo atrás era um preto opaco repleto do cintilante brilho das estrelas.

    — Eu... Quero que você fique com isso. — Joaquim tira da mochila um velho caderno com a capa de couro. — É um dos meus diários de viagem. Espero que se divirta com as loucuras que escrevi aqui enquanto passava pelo Uruguai e pelo Equador.

    — Obrigado. — Tento segurar as lágrimas, ajoelhando-me na toalha para receber o presente. A capa desgastada do seu diário é quente e macia. Seu cheiro está impregnado nas páginas, assim como seus sentimentos devem estar depositados em cada uma das palavras escritas aqui. — Eu quero te dar meu cobertor. — Murmuro, entregando meu cobertor de lã para ele.

    — Muito obrigado, Miguel. Vou usar ele sempre. — Diz, limpando os olhos também. — Posso te abraçar de novo?

    — Claro que sim! — Respondo.

    Nos jogamos um no outro e nos abraçamos, ainda de joelhos. O cobertor enrosca no seu tornozelo e a gente rir e chora ao mesmo tempo.

    Joaquim agarra meu rosto com as duas mãos e beija minhas pálpebras. A esquerda primeiro. Depois a direita.

    — São os olhos mais lindos que eu já vi. — Diz, ainda segurando meu rosto com as duas mãos.

    Reviro os olhos.

   — São castanhos. Como os seus.

    — Nunca! São castanhos como... Como grãos de cafés recém torrados. Como... Como uma supernova prestes à se desfazer! Eu jamais conseguiria contar todos os tons.

    — Obrigado. — Choro ainda mais, erguendo as mãos para tocar seu cabelo. Joaquim é a pessoa com mais cabelo que já vi em toda minha vida. Os cachos densos parecem moitas, com tantos fios escuros e enrolados que quase não consigo chegar no seu couro cabeludo.

    É lindo. Perfeito.

    — Obrigado, também. — Ele sussurra, e eu fico sobressaltado ao perceber que disse isso em voz alta.

    Aquele seu nariz enorme e Aquilino parece implorar para que eu o toque pelo menos uma vez, mas como estou com as duas mãos ocupadas com seus cachos, acabo fazendo a primeira coisa quem vem à mente: Toco-o com o meu próprio nariz, sentindo como ele é longo e frondoso.

    Joaquim não me olha como se isso fosse estranho, e ao contrário disso, ele acaba sorrindo e esfregando seu nariz no meu novamente, ainda segurando meu rosto com as duas mais e com nossos corpos ajoelhados colados um no outro.

    — Posso fazer uma loucura?

    — Sim. — Minha resposta não passa de um sussurro, então Joaquim de aproxima um centímetro a mais, selando nossos lábios em um beijo confidente, gentil e avassalador.

     Nossos lábios permanecessem unidos por um segundo, então nos afastamos em sincronia, sem desgrudar os olhos do rosto um outro.

    Não consigo lembrar como conseguimos levantar, mas quando volto à mim, Joaquim já está indo em direção a sua mochila.

    Ainda desajeitado como sempre, ele tropeça no saco cheio de ferramentas e pedaços do telescópio, espalhando-os pela areia do deserto. Mas ao invés de ferramentas e pedaços desconexos, o que se espalha são ferramentas e um único e montado telescópio.

    — Como...? — Indago, sem entender nada. Vou até ele em passos cambaleantes, ainda sem acreditar que é real.

    — Consegui montar enquanto você dormia. — Explica enquanto eu ajudo-o a recolher as ferramentas.

    Eu pego o telescópio. Ele é frio contra minhas mãos e mais leve do que imaginei que seria.

    — Então por que você não usou?

    — Nenhum telescópio tornaria aquele momento mais mágico do que observa-lo ao seu lado daquela forma. — Ele explica, sorrindo.

    Não consigo encontrar mais palavras, então me limito à assentir, devolvendo seu telescópio para o saco de linho onde estava pouco tempo atrás.

    Joaquim suspira, triste.

    — Sempre odiei despedidas.

    — Eu também.

    — Nós vamos em direções opostas, né?

    — Sim.

    — Você vai ficar curado, Miguel. Ainda há um mundo inteiro pra você conhecer!

    — O-obrigado. — Choro com mais intensidade, vendo-o colocar a mochila enorme nas costas e vir me abraçar.

    Eu abraço esse desconhecido que já não é mais desconhecido. Abraço Miguel como se quisesse arrancar um pedaço dele e leva-lo comigo para onde quer que eu vá. Abraço-o na tentativa de roubar seu cheiro, seu sorriso engraçado e gravar essa sua aparência de bobão no fundo da minha mente.

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COMETA HALLEY [COMPLETO]Onde histórias criam vida. Descubra agora