prólogo.

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Copacabana, Rio de Janeiro.
09 de Fevereiro de 2022, 21:34.

O vento estival corria sob a aprovação do universo, cortando os edifícios de concreto levantados na cidade do Rio de Janeiro. Despojada do velho segredo de melancolia, o astro dos loucos e enamorados, a Lua, resplandecia dependente do triunfo solar, a paixão perdida do Rei, aquela responsável pela movimentação das ondas, que corriam para a areia como um amor de longa data, desesperadas pelo contato. Pelo selar entre as partículas. As ondas que, com tanta sofreguidão, invadiam o ínfimo entre os grãos da areia úmida pelas suas lágrimas de lembrança do tempo em que possuía a sua inquieta amada. Por trás das paredes que guardavam a aura mórbida do hospital, Rosamaria experenciava uma das mais terríveis dores que o ser humano poderia ser amaldiçoado, que para muitos, vinha como a ilusão de uma alegria exuberante. Haviam se passado trinta horas desde o início da tal felicidade das amantes, trinta horas desde que o sonho da maternidade tornara-se ainda mais próximo da realidade da capitã da seleção feminina de vôlei, trinta horas antes do maior terror da vida de uma mãe preencher a pureza de uma nova alma.
Os dígitos de Gabriela envolviam a mão de sua amada, como se tentassem retirar toda dor sentida pela semelhante, assim como palavras de afirmação buscavam sobressair o peso dos gemidos que faziam doer os ouvidos ao ecoarem, predominando cada vão da sala repleta por profissionais que esforçavam-se para manter qualquer expressão que não despertasse o apavoro no coração das futuras mães. O zumbido dos aparelhos e a iluminação presente em apenas algumas partes do ambiente eram responsáveis por tornar a ocasião ainda mais opressora.

── Só mais uma vez, Rosamaria. Empurra só mais uma vez! ─ A obstetra, coberta pelo sangue, exclamou, aliviada pelo quase fim do parto.

A agonia não fez-se mais presente quando o mundo foi obrigado a receber mais um viver para habitar nos seus cantos. O pranto da amada criança ressoou, afogando o ruído das máquinas, ele alastrava-se rouco e desesperado, como se implorasse aos céus que o levassem do fardo cruel da existência no planeta azul. Rosamaria e Gabriela puderam, enfim, sentir o fruto do amor e devoção que sentiam uma pela outra, com o pequeno Ravi em seus braços. O afeto irradiou-se instantaneamente, como se, agora, a felicidade de ambas se resumisse em apenas um pequeno ser, o raio de sol que manteria as suas existências aquecidas.

         ── Ele tem a sua 'boquinha, meu bem-querer. É a coisa mais linda, que nem tu. ─ Com a voz embargada pela emoção, a Guimarães mirava a figura da mulher adorada segurando o maior amor que já havia conhecido. Por um segundo, tudo parecia ter parado para comtemplar a beleza do único momento que importava na vida da dona dos fios negros.

         ── Eu te amo com tudo que há em mim, princesa. ─ Olhares oceânicos encontraram-se, rapidamente, com a face da mulher que segurava uma câmera de vídeos. ── Bem-vindo ao 'mundão, Ravi Guimarães Montibeller. Você tem duas mamães que vão te proteger te tudo. Nós te amamos, solzinho.

         Os dizeres criados antecederam o pior. Em uma transição súbita, a Montibeller viu-se sem o pequeno seguro em seus braços, e a movimentação dos profissionais, preocupados, tentava tornar-se o novo comum para as duas mulheres. Um trabalho de parto que dura tantas horas pode trazer consequências para ambas as partes, para a mãe e para o bebê. A confusão era notória nas expressões das atletas, Gabriela buscava entender o porquê do seu filho ser retirado tão às pressas, sem quaisquer explicações. Os céus haviam escutado a intercessão do seu nascimento. A única maneira de livrar-se do peso do mundo é através da morte.

         ── Ele não está respirando, eu preciso de ventilação! Tirem as mães daqui.

         Essas foram as últimas palavras que Rosamaria permitiu que chegassem em seu consciente antes de ser levada da cena que poderia ser comparada com o inferno caracterizado no Livro Sagrado, ela não ouviu quando Gabi disse que não iria sair de perto da criança, nem mesmo entendeu os enfermeiros lhe falarem que iriam levá-la para o quarto. "Ele não está respirando". As mesmas facas atravessavam-lhe o âmago, fazendo com que a sua alma afogasse no líquido tinto, se perdesse nas próprias aflições e caminhos sombrios. A imagem dos profissionais tomando o corpo minúsculo do bebê não deixaria de assombrar a mente de uma mãe preocupada.
         Gabriela, inquieta com os próprios pés, não havia saído do lado da única porta que a separava de seu filho. Por alguns instantes, os ponteiros do relógio pareciam preguiçosos, cansados de tanto correr em círculos, atrás do tempo que nunca voltariam a ter. Por minutos, a terra parecia ter desistido de girar, como se quisesse manter a penumbra da noite eterna naquela parte do hemisfério, exausta de carregar seres que lhe ofereciam apenas o pior. E até mesmo a brisa, com a sua pressa para alcançar o luar, havia se esquecido de atravessar os becos da Cidade Bela. A doce voz da mulher com quem escolhera viver o resto dos seus dias dominou os seus pensamentos, "Ravi, aquele que é reluzente, sol. Ravi, o conhecimento, o poder. Ele transmite o calor. É a paz e conforto. Ravi. Aquele que é a vida.". Então, teve a certeza de que O Sol viveria, porque Ravi era isso. Ele era o astro rei, era o entusiasmo, ele era a felicidade. Os minutos que precederam tornaram-se mais toleráveis para a atleta que abrigava a esperança em seu coração, que a agarrava com todas as suas forças e vontades, porque sem ela, nada seria. A imagem da doutora a sair da sala de parto fez os seus sentidos falharem, como se estivesse vendo uma entidade sobrenatural, a expressão que vinha ao seu encontro era vazia, oca, o olhar cansado e marcado pelas horas de sono que haviam lhe escapado maquiava uma falsa tristeza. Ou talvez real, mas os pensares da morena se recusavam a imaginar tal coisa.

         ── E então, doutora? Onde está o meu filho? Eu posso ver ele? ─ A ânsia que carregava as falas da Guimarães era, de fato, admirável. 

         ── Nós fizemos tudo que conseguimos, Gabriela... Eu sinto muito pela sua perda.

         O olho do furacão, quase imóvel. Tudo aparenta parar, mas na verdade, a destruição é a única que prevalece. Em uma tempestade, a impetuosidade da natureza desafia a soberania do Divino, sufoca a resplandecência do solar e apaga quaisquer oportunidades do livre-arbítrio. Nem mesmo o raio destruidor pode trazer a luminosidade no meio da tormenta. Eu sinto muito pela sua perda. Rosamaria teria o seu coração destroçado.
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⠀冫𝒇ractura. ⠀ ꒰ rosabi ꒱Onde histórias criam vida. Descubra agora