Salter acordou naquela manhã como qualquer outra. O despertador gritava, o café estava morno e amargo, e a rotina de sempre o chamava. Ele era um homem comum, preso em um ciclo interminável de trabalho monótono, transporte público lotado e noites solitárias. Nada em sua vida sugeria que algo extraordinário pudesse acontecer.Caminhando para o trabalho, seus pensamentos vagavam. O céu estava nublado, e uma garoa fina cobria as ruas da cidade. Salter suspirou, ajustando a gola de seu casaco. Estava exausto, mas seguiria em frente como fazia todos os dias. Seu trabalho era em uma pequena firma de contabilidade, onde ele passava horas digitando números e conferindo relatórios que não faziam sentido para ninguém além de seus supervisores.
Enquanto esperava o sinal de pedestre abrir em um cruzamento movimentado, sentiu uma estranha sensação de frio na espinha. Olhou em volta, mas tudo parecia normal: carros passando, pessoas apressadas, a vida fluindo como de costume. Quando o sinal finalmente mudou, ele deu o primeiro passo, mas não teve tempo de reagir.
De repente, um som de freios cantando ecoou pelas ruas. O impacto foi violento e instantâneo. Salter mal teve tempo de processar o que acontecia antes de ser arremessado para o ar. Tudo ficou preto.
Quando abriu os olhos novamente, Salter não estava em uma cama de hospital, nem cercado por paramédicos. Ele estava deitado em uma superfície macia e quente, como um campo de flores. Ao seu redor, uma paisagem surreal se estendia até onde a vista alcançava: colinas suaves e céus lilases. Não havia o barulho incessante da cidade, apenas um silêncio tranquilo, quebrado ocasionalmente pelo som do vento.
— Onde... eu estou? — murmurou, tentando se levantar.
Olhou para si mesmo e percebeu que algo estava errado. Estava vestindo uma roupa estranha, parecida com uma túnica de seda leve e brilhante, nada parecida com suas roupas usuais. Ele correu a mão pelo corpo, aliviado por estar inteiro, mas confuso.
Foi quando ouviu passos suaves se aproximando. Ao se virar, viu uma figura que lhe tirou o fôlego. Era um jovem de aparência andrógina, alto, de pele pálida e traços delicados. Os cabelos eram longos, caindo em cascata pelos ombros, e seus olhos brilhavam com uma curiosidade serena. Usava roupas que misturavam elementos masculinos e femininos, perfeitamente alinhadas ao seu corpo esguio.
— Ah, você acordou! — disse o jovem, com um sorriso simpático. Sua voz era suave, um misto de doçura e malícia. — Bem-vindo!
— O quê...? Onde eu estou? — Salter tentou processar o que estava vendo, mas nada fazia sentido.
— Você está em Lumeris, o reino da serenidade — o jovem respondeu, se ajoelhando ao lado de Salter. — Parece que você é o novo reencarnado. Como se sente?
— Reencarnado? — Salter repetiu, piscando rapidamente. — Não, não, deve haver algum engano. Eu estava... na cidade, eu acho. Fui atropelado... O que está acontecendo?
O jovem inclinou a cabeça, como se estivesse considerando as palavras de Salter com cuidado.
— Isso acontece de vez em quando. Alguém do seu mundo acaba aqui. — Ele riu suavemente, uma risada musical. — Acho que é o destino. Mas não se preocupe, tudo vai ficar bem. Meu nome é Kalem, e eu vou ajudá-lo a se ajustar.
— Ajustar? — Salter estava atordoado. — Ajustar a quê?
Kalem estendeu a mão, ajudando-o a se levantar com uma facilidade que surpreendeu Salter. O homem observou ao redor, ainda sem acreditar no que estava vendo. As colinas suaves, o céu de tons lilases e rosados... Era um lugar lindo, mas profundamente estranho.
— Bom, para começar, você vai precisar entender como as coisas funcionam por aqui — continuou Kalem, guiando-o pelo campo. — Este mundo é um pouco... diferente do que você está acostumado.
— Diferente como? — Salter perguntou, ainda tentando manter alguma noção de realidade.
Kalem parou e olhou para ele com um sorriso enigmático.
— Não há homens ou mulheres como você conhecia antes — explicou Kalem. — Todos nós aqui em Lumeris somos... bem, você poderia nos chamar de femboys. Não nos encaixamos nas categorias que você provavelmente está acostumado.
— Femboys? — Salter piscou, confuso. — Espera, todo mundo aqui...?
Kalem riu, balançando a cabeça de leve.
— Sim, todo mundo aqui tem uma aparência andrógina. Isso é parte do equilíbrio deste mundo. Não há distinções rígidas de gênero aqui, como havia no seu.
Salter levou a mão à cabeça, tentando absorver essa nova informação. A ideia parecia surreal demais para ser verdade, mas ao olhar para Kalem, ele não pôde deixar de perceber a fluidez na aparência do jovem. Ele não era exatamente masculino, nem feminino; era uma mistura perfeita dos dois.
— Então... todo mundo nesse mundo é como você? — Salter perguntou, ainda em choque.
— Exatamente — Kalem respondeu com um sorriso. — Não se preocupe, você vai se acostumar. A propósito, qual é o seu nome?
— Eu... eu sou Salter. — Ele sentiu a boca seca. — Isso... isso é real? Eu estou realmente morto?
Kalem parou e colocou a mão no ombro de Salter, seu toque era leve, quase reconfortante.
— Tecnicamente, sim — disse Kalem com um olhar sério, mas não sem uma certa doçura. — Mas agora você tem uma nova chance aqui. Pode começar de novo. Aqui em Lumeris, as coisas são mais simples, mais... equilibradas. Você vai ver.
— Mas como isso... — Salter começou, mas parou ao ver outra figura se aproximando.
Era outro jovem, tão andrógino e gracioso quanto Kalem, mas com um ar mais ousado. Ele tinha cabelos curtos e bagunçados e vestia algo que parecia uma mistura de armadura e vestido. Seus olhos brilhavam de entusiasmo.
— Kalem, quem é esse? — perguntou o recém-chegado, lançando um olhar curioso a Salter.
— Este é Salter — respondeu Kalem. — Ele acabou de chegar.
— Ah, mais um novo! — O jovem sorriu e estendeu a mão para Salter. — Sou Thalor. Bem-vindo ao nosso mundo! Aposto que está se perguntando como as coisas funcionam por aqui, não é?
Salter apertou a mão dele, ainda atordoado.
— Sim... isso é um pouco... demais.
Thalor riu alto.
— Vai se acostumar, prometo. De qualquer forma, por que não o levamos para a vila? Acho que ele precisa descansar um pouco.
Kalem assentiu.
— Boa ideia. Vamos, Salter. Você vai gostar da vila, é cheia de pessoas interessantes.
Ainda perplexo, Salter apenas seguiu. O mundo que conhecia tinha desaparecido, e diante de si estava um novo começo, um lugar onde tudo era diferente — inclusive ele mesmo.
Enquanto caminhava em direção à vila, uma pergunta ardia em sua mente: "O que será de mim neste lugar?"