Capítulo Especial - A Filosofia de Kazuki.

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A noite estava fria em Tóquio. A chuva leve que caía há horas trazia uma brisa gélida que atravessava as ruas vazias da cidade. O céu, coberto por nuvens escuras, escondia qualquer sinal de estrelas. Kazuki estava sentado em um banco de madeira em um dos becos pouco iluminados, envolto em uma pesada jaqueta preta de couro, desgastada pelo tempo. Vestia uma camiseta simples, jeans escuros e botas que afundavam nas pequenas poças que se formavam no chão de concreto irregular. O capuz de sua jaqueta estava abaixado, deixando seu cabelo escuro, agora molhado pela garoa persistente, cair sobre os olhos. Ele parecia indiferente ao frio, como se o ambiente ao redor não o atingisse mais.

Já se passaram cinco anos desde a morte de Henry. Cinco anos desde que Lenka o salvou da prisão mental que sua amnésia dissociativa havia criado quando acordou do seu coma. Mas, mesmo agora, com a liberdade de sua mente recuperada, Kazuki sentia o peso de algo mais profundo dentro de si. Ele observava as luzes da cidade ao longe, que piscavam de maneira vaga, quase como uma metáfora para sua própria percepção da realidade – fragmentada e confusa.

"Eu sofro de algum transtorno psicológico?" A pergunta ecoava em sua mente desde a infância, mas nos últimos meses, ela se tornou uma obsessão.

Kazuki lembrava-se com clareza de sua infância, da sensação de estar desconectado das outras crianças, como se ele existisse em uma dimensão paralela, incapaz de alcançar ou ser alcançado. Enquanto todos interagiam, brincavam e se integravam, ele se isolava, não por escolha, mas por uma força invisível que parecia moldar sua própria essência. O mundo ao seu redor funcionava de maneira diferente, e ele, com seus passos lentos e incertezas, caminhava em um ritmo desajustado.

Seu pai sempre rejeitou a ideia de que havia algo de errado com ele. "Você não tem nenhum transtorno," ele dizia. Mas, com o passar dos anos, essa afirmação se tornou menos reconfortante e mais um lembrete doloroso de que talvez seu pai simplesmente não soubesse lidar com a verdade. Essa barreira invisível que o separava das pessoas parecia um código interno, uma programação que o mantinha distante, protegido, mas ao mesmo tempo, aprisionado.

Nos últimos meses, Kazuki começou a ler sobre o transtorno do espectro autista. Algo nas descrições o atingia profundamente. As dificuldades em se conectar com os outros, especialmente fora de seu círculo de confiança, a rigidez em seguir padrões e a dificuldade em se adaptar a novas situações sociais. Desde o nascimento, os médicos apontaram que ele não era como as outras crianças. Eles chegaram a dizer que ele jamais aprenderia a falar corretamente. Foi uma profecia que ele se recusou a aceitar, superando as barreiras da fala, mas não as do entendimento social.

Apesar de suas conquistas, Kazuki ainda se via como um enigma. A introspecção constante o levava a mergulhos profundos em sua própria mente, questionando a realidade ao seu redor. Ele sabia que era inteligente, capaz de feitos que outros considerariam impossíveis, mas, ao mesmo tempo, sentia-se preso em um ciclo de regressão. Medos antigos e inseguranças voltavam à tona, criando uma espiral de ansiedade e dúvida.

E então, havia os crimes. Kazuki havia cometido muitos atos que, para a maioria das pessoas, seriam imperdoáveis. Perseguição, manipulação, furto, sabotagem, indução ao suicídio... Ele não existia para o mundo, mas suas ações estavam gravadas na escuridão. Ninguém sabia quem ele era de verdade, ninguém poderia entendê-lo. Talvez fosse essa sua maior tragédia.

Nos últimos anos, ele dedicou sua vida ao estudo da mente humana, das ciências criminais e da psicologia, tentando encontrar respostas para si mesmo. Talvez, de alguma forma, ele acreditasse que, ao entender o comportamento de outros, ele pudesse finalmente compreender o seu próprio. Mas, agora, a sugestão de que ele pudesse estar no espectro autista o fez repensar tudo. Será que isso explicava sua incapacidade de manter relacionamentos? Sua dificuldade em compreender e se adaptar a explicações complexas? Tudo começava a fazer sentido de uma forma distorcida.

Sua mãe havia sido uma figura trágica em sua vida. Ela lutou contra demônios internos, provavelmente psicose ou amnésia dissociativa. Tentou tirar a própria vida várias vezes, perdida em seus próprios delírios. Kazuki sempre se perguntava se havia herdado algo dela, uma maldição que o condenava a viver à margem da realidade, sempre em conflito com sua própria mente.

A chuva começou a apertar, mas ele permaneceu imóvel, sem se importar. O frio e a umidade eram como um reflexo de sua própria condição interna – uma barreira invisível entre ele e o mundo.

"Eu tento ser moral," ele pensou. "Tento manter uma ética em tudo o que faço, mas a verdade é que não sei quanto tempo mais consigo manter esse código." Uma nova barreira dentro de si estava prestes a ser quebrada, e Kazuki sabia que, quando isso acontecesse, ele precisaria encarar uma verdade que vinha evitando por toda a sua vida.

Ele se levantou, ajeitando o capuz sobre a cabeça. O som distante de sirenes ecoava pelas ruas da cidade. Era o fim de mais uma noite solitária em Tóquio. Mais um passo em sua longa jornada de autodescoberta – uma jornada que parecia estar longe de terminar.

Fora do Ciclo III - O Diário de Henry.Onde histórias criam vida. Descubra agora