Capítulo 3

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"Guardar algo que eu possa lembrar de você seria admitir que eu poderia te esquecer."

Shakespeare

Ao deitar-me na cama no final do dia ocorreu-me uma inquietação, era impossível apenas deitar-me, o cansaço era enorme, a sensação de formigamento também. Parecia que a cama tinha formigas, virei de lado, então em menos de trinta segundos voltei para o outro lado e em menos de dez segundos virei de bruços. Eu já estava ficando farto disso. Eu estava nesse ciclo vicioso há pelo menos uma hora desde que deixei o livro que estava lendo de lado.

Farto da sensação inquietante e que me dava vontade de gritar, levantei-me e desci as escadas em silêncio, na parte comum da casa a única luz acesa era o candeeiro que estava ao lado do novo arranjo de plantas que a tia Clarisse tinha feito. Caminhei até o armário, peguei um copo e depois de olhar para a geladeira preferi apenas beber água. Depois fui para o sofá e liguei a televisão e coloquei em algum tipo de show, para passar o tempo e a inquietação. O único problema é que eu não sabia que essa inquietação ficaria comigo por muito tempo, não adiantaria fazer perguntas ou obter as respostas para elas. Eu precisava sentir, mas acima de tudo confiar que a solução estava no fim do caminho e que viria quando eu menos esperava.

Algum tempo depois, ouvi as chaves girando na porta e meu tio passando por ela. Olhei para o relógio. Já eram umas três da manhã. Aparentemente, eu não era o único que não conseguia dormir. Voltei a ver televisão, enquanto tomava coragem para perguntar o motivo da minha ansiedade e do meu caos interior.

Eu me pergunto por que um homem como meu tio estaria fora até esta hora. Parece-me polêmico... Mas eu estava cansado de ignorar as coisas que via e ouvia, cansado de apenas tentar seguir em frente. Ninguém aqui conseguiu descobrir o que estava realmente errado? Havia algo errado. O clima na casa era denso.

E eu estava ficando cada vez mais irritada comigo mesma e com minha incapacidade de lembrar, a tristeza no olhar da tia Clarisse toda vez que seu marido era mencionado e a ausência de Louise. Então fiz o que deveria ter feito desde o início, questionei;

— Onde você estava? - e para mim a questão não era só sobre onde ele estava às três da manhã, mas sobre tudo. Onde ele estava quando Clarisse caiu em lágrimas silenciosas à noite? Onde ele estava quando o café foi servido? Onde ele estava?

A cabeça virou num estalo e o copo que tinha na mão caiu no chão. A camisa social estava com as mangas arregaçadas.

— Achei que as crianças deveriam estar na cama. E para responder a sua pergunta: não é da sua conta", disse ele ao começar a pegar o copo caído.

Eu ri. Não o clássico riso da felicidade, mas o do sarcasmo.

-Realmente? Quer falar sobre a hora que eu vou para a cama? Acontece que há coisas mais importantes do que isso.

Ele parou por um momento e depois de colocar os cacos na pia olhou para mim:

- Gostou do quê? — encostou-se à pia e cruzou os braços. Levantei-me do sofá e fui até ele.

"Como o fato de você nos evitar como pragas, tio. Como o desprezo que vem tratando a tia Clarisse. Como o fato de que ela chega tarde todos os dias e que ela chora para dormir porque você está evitando ela. Isso é mais importante! Eu sei que você não me queria aqui. Acredite que eu não queria estar aqui! Mas eu estou, o que vamos fazer?! — Acabei gritando, acho que foi assim que pensei para finalmente apagar a raiva.

-Suficiente! - Tia Clarisse da escada - vá para o seu quarto Alexia, não tem como você falar com alguém assim.

Irritada, corri para o andar de cima e quando cheguei ao meu quarto acabei soltando um pouco mais de raiva fechando a porta, batendo-a. Então eu o tranquei – e então, enquanto me deitava na cama, gritei no travesseiro. Ah, como eu queria estar em outro lugar!

Eu sei que eles ficaram lá embaixo por um bom tempo depois que eu subi, porque os passos nas escadas e no corredor dos quartos demoraram a acontecer.

O que quer que tenham falado, não pretendo saber. Não mais. Estava farta de tentar entender a quão confusa e desgastante era ter uma terceira pessoa morando com você que nunca tivesse visto antes.

Eu não era má e entendia perfeitamente tudo aquilo que eles deveriam estar sentindo. Veja por mais bem acolhida que eu fosse eu ainda me sentia como uma intrusa no ninho. Eu me sentia um fardo e fosse o que fosse, Luís não fazia questão de demonstrar o contrário. Uma abordagem lenta e cuidadosa não poderia mover alguém como Luís que parecia água, uma água muito, muito parada e que estava com focos de dengue.

Não, eu precisava que ele compreendesse a urgência da situação e eu não conseguia mais ser a sobrinha fofa que ficava fora do caminho enquanto ele me evitava como uma praga. Finalmente tomei coragem para enfrentar o homem e obter as respostas para as perguntas que tinha. Afinal era sobre o meu passado, era sobre quem eu era e quem sou agora. E o que eu sabia era muiro raso, mesmo se esforçando para lembrar, não lembrava e isso estava me matando aos poucos. Desci as escadas rapidamente, temia perder a coragem se não se apressasse a falar de vez. Quando cheguei a porta do escritório, onde imaginou que o tio estaria, ela estava ofegante. Me recompus, arrumei o cabelo e ajeitei a roupa. Suspriei. Primeira regra em uma reunião de negócios - e sim eu sabia que essa era mais uma reunião familiar de negócios e tudo mais, mas precisava deixar algo claro por isso pesquisei – aparentemente uma boa aparência, olhar nos olhos e estar confiante eram vitais para fechar um acordo, fosse ele qual fosse. Tomei mais uma dose de coragem, e bati a porta, e já entrou, falando. Por sorte seu tio não estava com ninguém na sala.

— Tio.... Posso falar com você?

Luís levantou os olhos do computador e ajustou os óculos e assentiu.

— Há mais do que você está me contanto. Do que todos vocês já me contaram. - Afirmei enquanto sentava em frente a ele sem desviar o olhar.

Ele lambeu os lábios e assentiu.

— Há. - disse ele e voltou os olhos para o computador.

Ergui a sobrancelha. Não era possível. Ele ficaria ali, assim, parado e não diria nada? Bufei. Ele olhou de volta para mim com um olhar de desentendido.

—O que você quer que eu te diga?

—Qualquer coisa é aceitável ao invés do silêncio. Ele levantou e pegou uma pasta na estante.

— Isso é tudo o que sei.

Abri a pasta. Os laudos médicos, as atas judiciais, tudo o que eu já sabia. Tudo que eu tinha vivido. Não podia ser só isso. Não podia.

— Você tá de brincadeira, né?

Luís negou.

— As pessoas esquecem coisas por motivos específicos Alexia. Se esquecer de tanta coisa assim... Não deve ter nada que vale a pena lembrar lá. Só siga em frente. De qualquer maneira é tudo o que sei e não vou procurar mais. Agora, se me der licença...

Não sei se o que me chocou mais foi o que ele falou ou como falou. Nem se era a audácia de decidir o que era ou não importante para mim lembrar, nem o desprezo com que ele proferiu as palavras antes de me dispensar e fingir que eu não estava na sala quando se voltou para o computador.  

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⏰ Última atualização: Sep 13 ⏰

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