Mesmo falando com a Raquel todos os dias, o alívio que ela costumava trazer está meio perdido. Não é só a distância que está me afetando; é a constante presença do meu pai. Quando converso com ela, a conversa nunca é só entre nós dois. É como se, a cada vez que eu falo, o pai se intrometesse, mesmo sem abrir a boca. A presença dele está sempre ali, tornando cada troca de palavras uma interação em três, com o pai sempre colado.
Eu nunca mais tenho um momento a sós, nem mesmo conversando com a Raquel. É como se toda conversa fosse constantemente invadida por essa presença, onde qualquer diálogo entre mim e a Raquel se transforma em uma troca coletiva, mesmo que o pai não esteja participando ativamente. Reclamar disso? Não consigo. Meu pai está tentando de boa-fé fazer o melhor para ajudar, mesmo que isso signifique estar grudado em mim o tempo todo. Reclamar seria como criticar alguém que está fazendo tudo o que pode para ajudar, mesmo que o resultado não seja o que eu esperava.
E hoje não foi diferente. Fui falar com a Raquel sobre o aniversário do Davi e sobre a festa que a gente estava organizando. Eu realmente queria que ela estivesse aqui para ver isso, mas a conversa não teve chance de acontecer como eu esperava. O meu pai estava tão empolgado com a festa, que acabou tomando conta da conversa. O resultado foi que, em vez de ser uma conversa entre eu e a Raquel, acabou se tornando uma conversa entre a Raquel e ele.
Mas logo depois dessa interessante conversa entre os dois, as encomendas do meu pai começaram a chegar. Digamos que a reação do Davi não foi exatamente a que o meu pai esperava, mas foi exatamente o que eu tinha certeza que aconteceria. Davi não gosta muito dos Vingadores, então a expressão de decepção nos seus olhos ao ver tudo com aqueles personagens dominando todos os objetos era cômica.
— Que cara é essa, Davi? — perguntou meu pai, claramente decepcionado com a reação do meu irmão. — Eu pensei que tu ia gostar de uma festa de aniversário...
— E eu ia, se fosse de manhã... na piscina... ou se pelo menos eu tivesse escolhido o tema... Aliás, eu nem queria uma festa com tema de criança... já são doze anos...
— Mas eu pensei que tu gostasse disso. Teu quarto é cheio de boneco desses heróis.
— Não é desses, pai. É dos Jovens Titãs.
— E não é tudo a mesma coisa?
— Claro que não.
— E o que tu quer que eu faça agora? — A expressão no rosto do meu pai era quase de desespero, não por ter errado o tema, mas parecia ser mais do que isso.
— O problema não é o que o senhor vai fazer agora, pai — eu respondi, antes que Davi falasse mais alguma coisa. — É o que o senhor deixou de fazer.
— Como assim?
— Eu sei que o senhor fez o melhor que o senhor podia... mas não adianta tentar ajudar se o senhor não sabe como a pessoa quer ser ajudada.
— Oiê! — Do nada, a voz de Milena interrompeu a conversa. — Interrompo?
— Eu te conheço? — perguntou meu pai, surpreso com a presença daquela garota na nossa sala.
— Pai, essa é a Milena... aquela Milena... aquela... entendeu?
— Aah, sei — disse meu pai após alguns segundos, finalmente lembrando de quem eu estava falando. — Prazer te conhecer. Só te conhecia de ouvir falar e ontem por mensagem...
— O prazer é meu... Cheguei mais cedo pra poder ajudar, normalmente é uma bagunça organizar festa.
— Muito obrigado, mas... acho que... não sei nem se vai ter festa.
— Como assim? — Davi gritou, com um tom que mostrava mais indignação do que dúvida.
— Ué? Tu não acabou de dizer que não queria de noite, nem dos Vingadores?
— Mas eu não disse que não queria festa, só que não tava legal desse jeito.
— E então?
— Posso falar? — eu perguntei. — Ao invés de cancelar com quem o senhor chamou, só avisa que vai ser de tarde, pra trazer outra roupa pra poder entrar na piscina. E se o problema é a decoração ser coisa de criança, só cancela a decoração.
— Pronto! — Davi falou, empolgado. — Assim tá ótimo. Mas só pra eu saber... quem o senhor chamou?
— Teus professores, os meninos da tua sala e a Milena aqui.
— Pera, o senhor chamou a professora de Biologia?
— Chamei.
— Aaaaaaaaahhhh! — Davi gritou, saindo em disparada.
— O que aconteceu? — Milena perguntou.
— Ele odeia essa professora — eu respondi.
— E eu tinha que adivinhar isso? — perguntou meu pai.
— Não, pai — eu respondi. — Mas o senhor poderia ter perguntado antes de convidar as pessoas... Aposto que o senhor esqueceu de chamar a Lívia.
— Quem é Lívia?
— Ela é do 7° ano e o Davi é doido por ela. Então tem que vir ela, as amigas dela, e tem uns meninos do 5° que também são amigos dele.
— E por que tu não me disse isso antes?
— Porque o senhor fez tudo sozinho sem falar nada com ninguém.
— Espera aí — Milena interrompeu. — Erick, você conhece o Davi melhor que qualquer um. Fala com os convidados sobre o horário e chama quem o Davi ia gostar que estivesse aqui. Ricardo, o senhor pode falar com o pessoal da decoração pra não vir mais, ver com a comida se pode ser servida mais cedo e...
— Eu acho que o buffet não muda o horário assim de última hora, e o Davi não gostou nem dos descartáveis — meu pai interrompeu.
— Então pode cancelar e vem comigo lá pra casa.
— Como assim?
— A comida da minha mãe é uma delícia e lá em casa tem uma lojinha, a gente troca o que o senhor comprou pelo que tiver lá, fala com minha mãe pra ela preparar a comida... E se não der, a gente chama mais alguém pra ajudar.
— E quem fica com o Erick?
— Eu posso ficar sozinho com o Davi, pai. E a diarista que o senhor chamou ainda tá aqui.
— Não, eu não quero tu sozinho.
— Mas eu quero! — Essa resposta saiu com mais força do que eu esperava, quase como se tivesse saído por conta própria.
A surpresa no rosto do meu pai foi clara, mas ele apenas assentiu.
— Pega teu celular, se precisar de mim, liga. E pode começar a falar com os convidados. Logo o Davi aparece de novo e tu explica tudo pra ele.
— Ok.
Meu pai subiu, trocou de roupa e, junto com Milena, saiu no carro para resolver tudo que ficou combinado. A agitação e correria foi um alívio inesperado, que me fez voltar a sentir vivo. Por um tempo, cheguei a esquecer da perna e da cadeira. Estava focado em chamar os convidados que eu sabia que deixariam o Davi feliz. Aproveitei e chamei uma máquina de espuma, que com certeza iria gerar várias memórias boas pra ele. Poder me sentir útil me fez entender o verdadeiro significado da palavra "revigorante."
VOCÊ ESTÁ LENDO
Entre Amor e Expectativa
Ficção AdolescenteErick, um jovem de 16 anos, vê sua vida virar de cabeça para baixo após uma partida de futebol que o deixa de cadeira de rodas. Responsável por cuidar de seu irmão mais novo, Davi, desde a morte da mãe, ele agora enfrenta o desafio de ser cuidado pe...