prólogo: 20.12.2017

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Em cima do palco, na minha formatura do ensino médio, a única coisa em que eu conseguia pensar era em como os últimos três anos me marcariam na história no lugar de pessoa mais insignificante a passar pelos corredores daquela escola.

Eu nasci numa coisinha minúscula demais pra se chamar de cidade. No total, a minha turma de formandos tinha vinte pessoas. Dentre os vinte, eu tinha plena certeza de que eu era o mais infeliz. Terminar a escola significava que eu não tinha mais uma desculpa pra não me fazer presente na construtora, e a perspectiva de passar o resto da minha vida no escritório empoeirado do meu pai doeu mais que um murro no estômago.

Depois de derrubar esse balde de negatividade, acabei de perceber que não me apresentei:

Meu nome é Jeon Jungkook. Eu sou o caçula de três irmãos, e como deve ter ficado implícito ali em cima, meu pai é dono de uma construtora. É o maior empreendimento da nossa cidade, mas essa não é exatamente a parte impressionante, meu pai só não sabe se gabar direito. Desempregado e com uma esposa e um filho recém nascido pra sustentar, ele decidiu pegar um empréstimo no banco e abrir a própria construtora. Parecia o passo certo a se dar, depois de trabalhar tantos anos como pedreiro sob ordens alheias. Mesmo sem educação formal, Jeon Sungwoon ergueu do nada a Ilimiar Construções, pagou o banco, e no meio tempo entre uma coisa e outra teve mais um filho. Meu irmão mais velho, Jihyun, e meu irmão do meio, Jinae, têm uma diferença de idade de cinco anos. Eu vim bem depois. Quando Hyun tinha quinze anos e Nae dez, nasceu Jungkook, a maior decepção do grande Sungwoon.

A real é que ele nem queria mais filhos, mas quando descobriu que a minha mãe tinha engravidado mais uma vez, se apegou na ideia de finalmente ter uma menina. Imagine a decepção do velho quando me viu pela janelinha da maternidade.

Completamente sem relação, sabia que eu usei rosa e babados até os oito meses de vida?

Certa parte de mim sempre quis se convencer que era a falta de planejamento da minha existência que fez meu pai ser tão distante, mas Jihyun nasceu no momento mais inconveniente possível e ainda assim ele era o favorito. Mas é realmente muito difícil não gostar dele. Hyun agora tem trinta anos, mas já está casado com uma mulher incrível, vai assumir o comando da Ilimiar quando nosso pai finalmente largar o osso, e está esperando seu primeiro filho.

Linha por linha, tudo que se espera de um primogênito, né? E Jinae vem logo atrás. Esposo da filha do prefeito, pai de duas menininhas que o coroa ama mais do que a si mesmo, supervisor da maioria das grandes obras que a Ilimiar assume.

E eu... Eu acabei de me formar no Ensino Médio. Tenho alergia a poeira, então não posso chegar perto de um saco de cimento sem começar a espirrar como se estivesse prestes a explodir, enxergo tão bem quanto uma toupeira quando estou sem óculos e mal consigo fazer as quatro operações básicas sem errar pra onde sobem os decimais. Aceitei há pelo menos dez anos que não sirvo pra pedreiro por essas e outras razões, mas meu pai ainda tinha esperanças.

Pelo menos até eu sentar toda a minha família na sala de casa pra dizer que passei no vestibular.

Vestibular esse que ninguém sabia que eu prestei.

Vestibular esse que garante uma vaga em uma faculdade do outro lado do país.

- Parabéns? - Jinae começou, meio confuso, meio achando graça. É irritante como ele e Jihyun são variantes melhores de mim. Até o cabelo do desgraçado é melhor.

Hyun também é mais alto, mais forte, nunca vomitou numa lata de lixo antes de uma apresentação de seminário e é a escultura de um ser humano perfeitamente funcional.

- Que curso é esse que você falou? Mexe com computador, é? - minha mãe interrompeu, toda cheia de preocupação.

- Tecnologia da Informação. É de computador, sim - eu emendei, num nervoso sem tamanho. Se tivesse um espelho na minha frente, teria me assustado com o tamanho dos meus olhos mesmo por trás da lente do óculos. Quando eu era criança, Jinae vivia me chamando de Chicken Little por causa deles.

- E o que que é isso? - meu pai se pronunciou. As sobrancelhas dele estavam franzidas de um jeito familiar quando se tratava de mim.

Às vezes, eu sentia como se estivesse falando em outra língua e era por isso que todo mundo me olhava estranho quando eu abria a boca. Como se eu fosse um idiota digno de piedade.

No momento eu me sentia meio digno de piedade, sim. Ainda estava com a beca de formatura e sapatos sociais, mas em minha defesa, era a única noite em que eu tinha certeza de que teria a família toda unida pra dar a notícia, e eu precisava correr antes que as esposas dos meus irmãos ligassem ou meu pai arrumasse coisa mais interessante pra fazer.

- É uma pessoa que mexe com sistemas. Tipo o Facebook! - definitivamente digno de piedade.

Meu pai me encarou por sólidos vinte segundos em silêncio mortal, e do lado dele, Jihyun me olhou como se eu tivesse acabado de dizer que queria ir embora com o circo.

Eles com certeza estariam mais felizes se o tal vestibular me garantisse uma vaga pra estudar engenharia. Ou física. Ou sei lá qual outra área seria útil em uma construtora.

- Você quer se mudar pra Seoul pra estudar como mexer no Facebook? - Jinae brincou, mas eu tive certeza que a minha pressão caiu, porque nossos pais olharam pra ele e depois pra mim e deram um daqueles suspiros em conjunto que gritam "onde foi que a gente errou?".

- Não! Eu quero me mudar pra Seoul pra estudar e projetar coisas tipo o Facebook. Programador é uma profissão com várias oportunidades de atuação - eu me sentia apresentando um seminário na escola, ou um standup excepcionalmente ruim, daqueles onde nem as risadas pré gravadas ajudam a quebrar o gelo.

- E quanto custa a mensalidade desse seu curso de computador? - meu pai perguntou, e nem me dei ao trabalho de corrigir ou relembrar que eu já tinha explicado tudo aquilo, porque só o fato dele não ter saído da sala sem olhar na minha direção já era uma vitória.

- Nada! Por ter passado entre os cinco primeiros no vestibular, eu tenho uma bolsa. É meio em cima da hora, mas eles também dão a opção de morar no campus com outros estudantes por um preço menor do que um aluguel.

- E onde você vai comer? - Jihyun arriscou perguntar, depois do meu monólogo.

- Os bolsistas ganham credenciais pra alimentação no refeitório da faculdade. Vem incluído no preço do dormitório.

- Quanto? - meu pai voltou a repetir, e eu aproveitei a deixa pra correr até o meu quarto e pegar o calhamaço de folhas onde estava impresso o contrato de matrícula.

Na meia hora que ele levou pra ler por cima cada uma das folhas, eu segurei a respiração, soltando o ar só quando percebia que estava prestes a desmaiar.

Ainda muito sério, meu pai suspirou daquele jeito condescendente mais uma vez e acenou com a cabeça.

- Você vai, Jungkook. Se é isso que você quer fazer com seu tempo e com meu dinheiro, você vai.

Havia uma infinidade de nuances perdidas no jeito que ele falou aquilo, folheando o contrato com displicência e uma mistura de incredulidade e decepção no olhar.

Eu sempre soube que todos os detalhes da minha existência eram captados pelo meu pai com certo desprezo, tipo o jeito que eu não conseguia amarrar os cadarços dos meus tênis até os onze anos e me tornava uma falha de segurança toda vez que entrava na sede da construtora.

Sou muitas coisas das quais ele não se orgulha, mas no aeroporto, dois meses depois, eu tenho certeza de que Jeon Sungwoon se orgulhou de como eu lhe dei as costas e não parei de andar até que minha família me perdesse de vista.

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