Ponto de Ruptura 🥉

primeira quinzena de fevereiro de 2018

domingo, 05.02.2018

Existe uma miríade de situações humilhantes pelas quais um ser humano pode passar. Nenhuma delas se compara a carregar uma mala de rodinhas três lances de escada acima, num prédio que você não conhece, e cuidando para não fazer contato visual com nenhum dos seus futuros vizinhos porque você chorou por quarenta e cinco minutos no banheiro do avião e seus olhos estão inchados como se você não dormisse há meses.

Eu esperava muitas coisas de um dormitório compartilhado. A maioria delas extremamente negativa, não nego, mas o fato de eu ter um quarto só pra mim foi suficiente para eu não cogitar suicídio pelo que seria a vigésima vez no espaço de uma hora.

Sabe, alguns meses atrás eu teria dito de boca cheia que a opinião do meu pai sobre mim não importa mais há muito tempo, mas aquele último olhar antes de entregar a passagem pro segurança é algo que eu nunca vou esquecer. Não chegava a ser indiferente nem negativo, mas algum sentimento muito específico e inutilmente localizado entre esses dois que eu jamais saberia nomear.

Um dos meus maiores defeitos é, apesar de ter péssima memória, remoer cada situação até que não haja mais nada pra se pensar quanto a ela. Com o passar do tempo os detalhes vão sumindo, mas o rancor fica. Essa é uma das razões pra eu ter começado a escrever um diário quando soube que me mudaria pra Seoul.

Os próximos três anos serão os mais importantes da minha vida até agora. Tanto porque é a primeira vez que eu vou ter oportunidade de ver como eu me encaixo em sociedade longe da barra da saia da minha família, como porque tudo que vai acontecer depois depende de como eu vou me sair. E quando eu for mais velho (ou daqui uns quatro meses quando eu esquecer de tudo isso), eu com certeza vou apreciar poder ler sobre o que eu estava sentindo durante essa época.

Também tem o agravante de que eu falo mais que a boca e no momento não tenho ninguém pra me ouvir, então preciso despejar os cinquenta pensamentos que eu tenho por minuto em algum lugar.

Eu passei os últimos dois meses pesquisando tudo sobre o dormitório, desde os trajetos para o mercado e hospital mais próximos até o ano de abertura do edifício em que eu moraria pelos próximos seis meses. Sabia que eles rotacionam os estudantes todo semestre? Porque eu sabia. Eu pesquisei.

Eram sete e meia da manhã quando eu cheguei no meu andar. Unidade A-15, uma plaquinha na porta dizia, e eu fucei os bolsos da calça com desespero como se não tivesse passado o vôo inteiro batendo na maldita chave pra ter certeza que ela ainda estava lá. Taí outro defeito do eu de agora pro eu do futuro poder se lembrar (caso ele tenha superado essa mazela): Você é mais ansioso do que o Coragem o cão covarde.

O quarto consistia de uma cama com uma janela logo acima da cabeceira, uma escrivaninha surrada com uma cadeira de balanço (que depois eu fiquei sabendo que era pra dificultar possíveis tentativas de suicídio. Super reconfortante), e, pasmem, meu próprio banheiro escondido por uma portinha sanfonada. O colchão era duro e cheio de calombos, a janela só abria até a metade (também em prevenção ao suicídio) e o piso de madeira estava todo riscado pelo arrastar da cadeira.

Era perfeito.

Como meus pais não esperavam outro filho, eu dormi no mesmo quarto que eles até os sete anos (inclusive acho que é por isso que eles não tentaram ter uma menina depois de mim #empatandodesde2000), quando Jihyun se casou e vagou um dos quartos. Jinae o ocupou, e eu fiquei com seu antigo quarto, de onde tive que arrancar recortes de mulheres nuas e adesivos do time de futebol dele das paredes até... Bom, ontem.

Nada na casa dos meus pais parecia mesmo meu, até porque quando você é o caçula muitas das suas coisas acabam sendo herança dos seus irmãos (uniforme e material escolar, sapatos, celulares. Até meu corte de cabelo, quando Jinae passou a deixar o dele crescer a pedido da esposa). Eu conhecia aquele quartinho onde o sol batia sem dó de manhã há dez minutos e ele já era mais meu do que qualquer coisa que eu já tive antes.