Raquel é a filha obediente que seus pais querem que ela seja, diz o que eles querem que diga, faz o que querem que faça, não tem perspectivas além da cidade pequena que vive e até mesmo aceitou um casamento arranjado para agradá-los. Mesmo casada e...
Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.
Todo conservador que bate no peito e se diz orgulhoso de ser cristão faz e esconde coisas que poderiam fazê-lo ser excomungado por Jesus em pessoa. A lista se estende a meus pais, aos pastores e fiéis da nossa igreja. E a mim também.
Desde os doze anos, participando de um grupo de jovens, acordava cedo nos fins de semana para pregar de porta em porta para tentar evangelizar o máximo de pessoas desviadas possível, com uma bíblia embaixo do braço, rodando a cidade de saia jeans, sapatilha e blusa branca com a imagem de Jesus estampada, como quem empunhava uma espada para desafiar os males do Demônio presentes em todas as pessoas do mundo.
Todas as outras pessoas, exceto nós, conservadores, é claro.
Lídia e Rute eram minhas únicas amigas, e assim como eu, elas não tinham interesse numa vida fora da igreja. Até porque o mundo era sujo e pecaminoso demais para nós, ovelhinhas inocentes. Já o Reino dos Céus, ah, aquela sim era uma vida que valia a pena esperar para viver. Nenhuma mulher precisava das coisas mundanas, como cortar os cabelos, feminismo e músicas profanas da Madonna, nós tínhamos limonada aos domingos, excursões, retiros no meio do nada e filhos para gerar para nossos maridos. E, com certeza, não precisávamos de independência financeira, vontades individuais e planos profissionais se ter um marido era o máximo que uma mulher poderia querer.
— Essa geração tá perdida com o homossexualismo e lesbianismo, temos que ter vergonha dessas coisas do mundo — comentava Lídia, sentada numa cadeira e olhando as crianças sentadas no chão. Seus cabelos escuros recém alisados caíram para frente. Não muito tempo atrás eram cachos do cabelo crespo que ocupavam aquele lugar. — Por isso é importante sermos diferentes, porque é o que Deus quer, e temos que aceitar os planos que Ele tem pra cada um de nós e lutar contra o mal.
Lídia era a mais bem vestida, falava bem e consequentemente cheia de pretendentes. A maioria dos rapazes dizia que queria se casar com ela. Ela era a que atuava melhor nas nossas apresentações, tocava alguns instrumentos na banda e seus pais eram super conhecidos pelo nome que zelaram a vida inteira. Naquela família não havia desavenças, filhos rebeldes ou algo do que reclamar, só uma família perfeita com sua única e belíssima filha que os enchia de orgulho por ser correta em tudo.
— E se forem bonzinhos como nós, não vão pro inferno — dizia Rute em seguida, com sua voz meio rouca que constantemente tentava afinar. — É pra lá que vão todos aqueles que vivem no pecado e perdição. E ninguém quer isso, né?
Já Rute era um pouco mais como eu. Claro, se tirasse sua indelicadeza, ódio por saias e a mania de sempre cortar os cabelos loiros aos poucos para que ninguém notasse, talvez ela fosse mais como eu. E, claro, ela tinha namorado, eu ainda não. Éramos parecidas porque contávamos tudo uma pra outra primeiro, gostávamos das mesmas pessoas, sabores de sorvete, calçamos o mesmo tamanho e sua família estranha parecia com a minha.
Depois de alguns comentários sobre ela precisar preservar mais sua feminilidade, Rute começou a vir com cabelo solto e batom discreto nos lábios, porque, claro, não éramos meretrizes para usar vermelho. Ela era a favorita do pastor, e a que ele garantia que era a mais bonita porque tinha olhos azuis que refletiam o divino. Olhos gentis que poderiam passar segurança sobre tudo que saísse da sua boca rosada. O pastor César estava sempre tecendo elogios e dando conselhos, e a gente sempre sorrindo ao ouvi-los. “Lídia ficaria mais bonita do que já é se esse cabelo fosse bonito também”, “Raquel tá ficando uma moça linda”, “Ah, Rute, você parece um anjo”, “Vocês são as mais promissoras daqui, tenho orgulho de vocês!”
