Pedi uma porção média de frango xadrez acompanhada de uma pequena de arroz frito e, enquanto esperava, coloquei as coisas no closet. Quase como um tique, a cada cinco minutos meu olhar se desviava para o espelho. Sempre a cada cinco minutos.
A campainha tocou, e desci as escadas saltitante como uma criança. Estava faminta.
Me deparei com um entregador gorducho, com um sotaque latino carregado e olhos claros que se destacavam em sua pele castanha.
— Vai pagar no cartão?
— Sim.
Ele puxou uma maquininha do bolso.
— Isso é um anel da Red Kings? — Ele ergueu uma sobrancelha em resposta. — Desculpa ser intrometida, minha prima frequentou a fraternidade antes daquela bagunça e tinha um desses.
O homem era jovem demais para ter frequentado, devia ter uns 20 anos.
— Era do meu tio. Ele fez parte antes da bagunça. — O assunto parecia incomodá-lo bastante.
— Estou escrevendo um livro e seria de grande ajuda o relato de alguém que teve contato com aquela fraternidade. Pode me passar o contato dele?
— Ele já morreu, de desgosto. E eu vou morrer também se continuar enrolando.
— Entendo, eu ia pagar bem.
— Bom, eu sei várias histórias de cabo a rabo. Posso fazer o papel dele.
— Seria de grande ajuda.
— Meu expediente acaba às 8. Eu passo aqui depois. — Passou o cartão e me entregou o pedido.
— Eu ainda não sei o seu nome.
— É Javier López.
Era um garoto estranho de se olhar, mas sabia que devia ter um bom coração.
Sentei na bancada da cozinha e abri uma cerveja para acompanhar. Terminei de comer e subi as escadas, renovada de energia e pronta para trabalhar.
A história deveria tratar de uma jovem caçadora de demônios que foi para uma cidade amaldiçoada — aquele velho clichê que sempre vendeu bem, se bem construído. Eu queria dar um toque especial nela. Inicialmente, pensei em dar a ela poderes sobre o sangue, mas ainda faltava algo. Agora, o que, eu não sabia.
Consegui terminar o primeiro capítulo, mas...
— Não está saindo do jeito que você quer?
— Quem disse isso? — Procurei o dono da voz. Não havia ninguém ali.
— Estou bem na sua frente.
Mesmo com medo, olhei para o espelho e vi uma versão de mim, um tanto mais bonita e descansada, com cabelos mais brilhantes.
— Devo estar ficando maluca de vez.
Ela acenou para mim, simpática.
— Você viveu em Ravenwood. Sabe muito bem que, se tem um lugar para algo assim acontecer, é aqui. E sei bem que a senhorita nunca foi muito cética.
— Um espelho amaldiçoado. Bem que eu devia saber que aquele homem devia ser mesmo o diabo.
— Não fale assim dele. O senhor McNamara cuidou bem de mim. Ele me guardou especialmente para você.
— Qual é o truque? Vai roubar meus olhos em troca de algo que me faria imensamente feliz?
— Não, não. Sou uma mulher bem prática e não tenho interesse nesses seus olhos castanhos sem graça. Quero te oferecer um acordo: você me faz um favor, e eu faço um favor para você.
— Seja direta.
Ela abriu um sorriso largo demais para um ser humano, com dentes brancos demais e a pele das bochechas parecendo feita de argila.
— Quero que me dê o seu rosto.
— Meu rosto?
— Em troca, te dou o rosto que você quiser. A aparência dos seus sonhos.
Minha atenção continuava firme naquela versão de mim tão irreal.— Por que quer o meu rosto?
— Apenas gosto de colecionar máscaras. Não consigo produzir pessoas feias, apenas rostos lindos, e gosto de ter um estoque variado à minha disposição.
— Isso é loucura. — Belisquei minha bochecha, tentando acordar. — E se eu conseguir outro rosto?
— Não é assim que funciona. Tem que dar para receber. Imagine você com dois rostos?
A campainha tocou. Não poderia haver desculpa melhor para sair.
— Lembre-se do nosso acordo, docinho.
Fechei a porta, desesperada para voltar ao mundo real.
O entregador apareceu com um grosso caderno, que devia ter pelo menos mil páginas.
— Aqui eu tenho toda a história da Red Kings e de todas as fraternidades ligadas a ela.
— Caramba, como conseguiu tudo isso?
— Sempre fui obcecado por esta cidade. Quando quer pagar por tudo?
— 100 dólares parece um preço justo.
— Por uma pesquisa de uma vida? Acho que não.
— 1.000?
— Pode aumentar.
— Não posso pagar mais do que isso.
— Então já vou indo. — Ele se virou.
Uma voz, pouco mais alta que um sussurro, soou ao pé do meu ouvido, quente e gelada ao mesmo tempo:
— Abra o armário da cozinha, em cima do fogão.
— Espera, me dá só um minuto.
Corri e o abri, curiosa para ver o que poderia haver ali. Encontrei uma maçã feita de ouro maciço, pesando bem mais do que uma maçã real.
— Isso é de verdade?
— É uma herança de família. Pode ficar.
— Parece justo.— Trocamos, e ele parecia bem satisfeito. — Não deixe essas informações caírem em mãos erradas, pode se arrepender.
Me sentei no sofá da casa, louca para explorar os mistérios contidos ali.
— Precisamos conversar — gritou uma versão distorcida da minha voz.
Subi com um gosto amargo na boca.
— Viu como sou boazinha? Nem vou cobrar por esse favorzinho.
— Onde conseguiu aquilo?
— Sou uma colecionadora bastante gananciosa.
Ela brincava com uma bolinha vermelha, jogando-a para cima e pegando-a no ar.
— Onde conseguiu isso?
— Peguei de uma pirralha idiota com câncer.
Ela projetou a mão para fora do espelho, como se sua superfície virasse mercúrio líquido, segurando firmemente a bola nos dedos fechados.
— Está me dando?
— Claro que não — falou entre risos debochados e voltou para dentro. — Estou apenas mostrando.
— Você pode sair daí de dentro?
— Claro que posso.
Aquilo só podia ser mentira. Se não, por que ela ficaria lá dentro?
— Então por que não sai?
— Gosto de estar aqui dentro. O mundo dos espelhos é tão vasto. Posso ir para onde eu quiser e estar em todos os lugares ao mesmo tempo.
— Você pode estar em qualquer espelho?
— Eu estou em todos os espelhos, inclusive agora.
— Você não é só o meu reflexo?
— Eu sou todos os reflexos e todos aqueles que podem ser refletidos. — Os olhos daquela coisa mudaram para um prateado translúcido. — Este aqui é só o meu favorito.
— O que acontece se você sair?
Ver-me dando um sorriso tão perverso era assustador, como se ela fosse uma parte de mim que eu nem conhecia... Não, ela não era eu. Era uma criatura completamente diferente.
— Bom, o que aconteceria se todos os reflexos do mundo simplesmente saíssem dos espelhos? Pense nisso.