Três dias se passaram, e eu não tive coragem de me olhar em qualquer superfície que pudesse refletir meu rosto. Durante esse tempo, comecei a estudar o caderno, mas nada fazia sentido. Fiquei presa no primeiro caso, que contava sobre um grupo de três jovens que usaram uma droga de origem indígena fora de um ritual e se tornaram imortais ou algo do tipo. Uma verdadeira bagunça.
Sentei-me em frente ao computador, exausta.
— Como vai a sua pesquisa?
— Nada faz sentido, como se eu tivesse a parte final de um mistério, mas sem o começo.
— Já decidiu se vai me dar o seu rosto?
Deitei a cabeça na mesa e falei com a voz abafada:
— Não.
— Buá, buá, assim eu vou chorar.
— Engraçadinha.
A campainha tocou.
— Melhor atender, o sanguessuga quer mais do seu dinheiro.
A ignorei e fui atender.
— Senhor López?
— Posso entrar?
— Claro.
Saí da frente para ele passar e, sem eu precisar dizer uma única palavra, ele se sentou no sofá e acendeu um cigarro de maconha.
— Aceita um? Eu mesmo fabrico essas belezinhas. — Ele se mantinha muito sério.
— Não, obrigada, não ponho um cigarro na boca desde os 21.
— Você leu as minhas anotações? — Ele tragou profundamente, apreciando.
— Só o começo.
— Então me faça um favor: as esconda, de preferência em um lugar onde ninguém possa imaginar, longe da cidade fantasma no leste de Ravenwood, em segurança. Faça um pacto com o diabo se for necessário e nunca, NUNCA diga a ninguém que sabe sobre o caso dos 3 jovens da Hunters' Hunt.
— E daí que eu sei? Isso foi nos anos 60, quase ninguém daquela época deve se lembrar.
— Ah, tem criaturas que venderiam suas almas para destruir minhas anotações, apesar de a maioria nem ter uma alma. — Bufou a fumaça malcheirosa.
— Quem poderia... — Eu já imaginava a resposta, coisas como o espelho.
— Humanos, seres de além do véu, um certo wendigo.
— Por que me deu elas se são tão perigosas? — Pensei que ele hesitaria mais em me responder.
— Porque você é ruiva, e também porque estou cansado de segurar esse segredo sozinho.
— O que o meu cabelo tem a ver com isso?
— Ele tem um tom de cobre, puxando para o castanho, mas, ainda assim, você é ruiva, e as ruivas são seres poderosos neste mundo.
Ele se levantou desajeitado e apagou a bituca no braço do sofá.
— Já vou indo, boa sorte.
— Espera, não pode jogar uma bomba dessas em mim e não explicar o mínimo.— O que você precisa saber eu já lhe disse. — Ele abriu a porta e saiu, deixando tudo tão vazio quanto antes.
Senti uma vontade profunda de fumar, então saí, a chave do carro em uma mão e as anotações na outra, e dirigi o mais rápido possível até o posto de gasolina mais próximo.
Estacionei e andei até a porta de vidro, com a cabeça nas nuvens, e quando olhei diretamente para ela, vi meu reflexo distorcido: os olhos, buracos vazios, a pele mutilada e mãos monstruosas saindo dos cortes.
Caí para trás, ofegante.
— Moça, a senhora tá bem? — Disse o funcionário, saindo de dentro da loja.
Coloquei a mão no centro do peito numa tentativa de acalmar meu coração, que batia feito um tambor.
— Estou sim, só achei que tinha visto uma aranha na porta. — Em resposta, ele me ofereceu ajuda para levantar.
Entrei logo pedindo um maço, ou melhor, dois. Paguei e saí com um já aceso na boca, com um isqueiro novinho. Sentei-me no carro, apreciando o sabor com as janelas fechadas.
— Por que você foi embora? — Disse meu reflexo distorcido no espelho do retrovisor.
— Precisava fumar.
— Mas você me disse que nunca mais colocaria um cigarro na boca.
— Eu não... — Lembrei que, quando descobri o câncer de pulmão do meu pai, me olhei no espelho e realmente falei exatamente isso.
— Você estava com os olhinhos cheios d'água. Agora, por que não continuamos nossos negócios?
Um braço comprido se projetou para fora do pequeno espelho. Os dedos, de unhas longas, se cravaram na pele do meu maxilar e começaram a perfurar minha carne, rasgando a pele e literalmente arrancando meu rosto.
Finquei minhas próprias unhas no comprimento do braço com toda a minha força, e em troca ele usou o mindinho na lateral do meu pescoço.
— Me dá, me dá, me dá. — Gargalhou uma voz que lembrava vagamente a minha. — Eu quero, eu quero o seu rosto. A carne dele é tão saborosa, e eu sinto tanta fome!
Apaguei o cigarro na parte de cima da mão, o que me deu tempo para ela se afastar, e eu puxar o retrovisor e o quebrar, batendo com força no volante do carro como uma louca. A mão desapareceu.
Toquei nas feridas e já havia conseguido puxar um pedaço considerável.
Eu não iria para aquele hospital nem a pau, então me consolei fazendo os primeiros socorros.
— Você não tem o direito de me negar comida.
A voz dentro dos meus pensamentos.
— Cala a boca.
— Acha que estou de brincadeira? O velho McNamara me largou às traças e agora olhe para mim, esquecida, como quem não vale nada. Banida, exilada, passando fome. Eu não devoro um rosto faz tanto tempo. A carne saborosa e macia das bochechas, o sabor do sangue como um molho bem temperado me faz querer explodir. Eu posso lhe dar um rosto muito melhor em troca.
— Mas ele não seria real.
— Qual é o valor do seu pedaço de carne? Com sardas, essas olheiras pesadas, seu nariz um pouco grande, a cicatriz que vai se formar... O que seria melhor do que ser perfeita?
— Individualidade. Esse é o meu rosto, ele faz parte de mim e nenhuma máscara plástica vale o preço.
— O que vai fazer? Eu estou em todos os lugares. Se você olhar para um espelho sequer, eu salto para fora e o arranco de uma vez só.
Saí e entrei rápido na casa depois de pegar um taco de beisebol que sempre tinha guardado no porta-malas. Enrolei meu rosto em um cachecol que deixei largado e fui direto para a televisão, me assegurando de não encarar meu reflexo.
— O que pensa que está fazendo?
— Eu não te devo satisfações.
E quebrei a TV com uma só tacada. A voz dela saiu dos pequenos cacos.
— Você não entendeu? Eu estou em todos os lugares e farei questão de arrancar toda a sua pele, pedacinho por pedacinho, bem devagar, enquanto minhas mãos saem da sua pele para arrancar e rasgar cada pedacinho saboroso da sua identidade.
Subi as escadas e parei um pouco antes no corredor para quebrar o espelho que ficava na parede esquerda.
— Por favor, não faça isso. Eu prometo que vou te dar uma cara muito melhor. O que é a individualidade em troca da perfeição? Ser linda como as mais belas modelos, mesmo que seja feito de plástico. Você vai conseguir conquistar qualquer homem ou mulher que desejar, pessoas bonitas têm tudo tão mais fácil.
Dos caquinhos, pequenas mãos saíam, não mais grossas que fios de macarrão, fracas demais para me parar.— Sua puta! Vadia! Porca! Pessoas como você não nasceram para ser amadas. Teve até que mostrar os peitos para conseguir publicar seu livro. — Ela percebeu pelo meu silêncio que tinha tocado em um ponto delicado. — Teve que se prostituir para ter alguma chance no mercado. Só serve para ser comida como uma leitoa na mesa. Foi o que ele disse, lembra?
Uma lágrima solitária desceu.
— Isso aí, vadiazinha, puta, vagabunda.
Dei um chute na porta do quarto e entrei, inflamada pela raiva e vergonha, pronta para quebrar aquele espelho até só restar pó, e me deparei com meu pai. Bom, parecia ser o meu pai.
— Bevi, o que você está fazendo?
— Você não é real. — Fechei os olhos para, inutilmente, conter as lágrimas salgadas que se formavam. — Meu pai está em estado terminal, bem longe daqui.
— Então por que está aqui? Por que fugiu de mim? Não tem mais coragem de me olhar?
— Eu só não queria mais te ver definhando.
O reflexo havia saído de dentro do espelho. Ela realmente podia fazer aquilo?
Eu ouvia os passos dele se aproximando e fiz um cálculo de quanto tempo teria antes de ele estar próximo o suficiente para me matar.
— Eu estou definhando, bem mais rápido do que antes. Logo minha carne vai ficar flácida e todo o gás e a merda do meu corpo vão pular para fora assim que eu morrer.
Em um único movimento, ele se despedaçou. Os cacos voaram com tanta violência que alguns chegaram a arranhar minha pele, como uma chuva cortante.
Sabia bem que aquela criatura não havia morrido. Ela estaria ali, sempre. E, por isso, eu nunca mais poderia me olhar no espelho.
