catarse.

225 29 18
                                    

──── durou apenas um minuto
mas para ela foi a eternidade

𝐀𝐌𝐀𝐑𝐈
catarse.

Maria Stella posicionou os pés na grama, controlando a respiração. O passar daquele maldito relógio parecia se prolongar por uma eternidade — ela nem precisava olhar para saber que marcava quase duas horas de jogo. O jogo da minha vida. Sentia cada minuto nos ombros, nos pés, nos pulsos. Momentos como aquele sempre exigiam muito dela.

A plateia estava silenciosa pela primeira vez desde o início da partida. Se estivesse sendo sincera, Stella preferia que eles estivessem gritando, porque aquela distração era mais fácil do que conviver com tantos pensamentos por minuto. Girou a bola levemente entre os dedos, esperando o aceno do árbitro para reiniciar o tie-break e retirá-la dos devaneios.

Não era algo que deveria estar acontecendo. Stella era fria e sagaz e gostava de jogar sob pressão. Certamente não era mais uma adolescente estreando no cenário internacional, mas mesmo ela tinha problemas em lidar com o peso das expectativas. Vez ou outra, deslizava o dedo pelo nome do pai escrito em dourado na base da raquete — fosse por conforto ou apenas para não esquecer do propósito. Tinha mandado fazer aquela homenagem quando se convenceu que não desabaria a chorar toda vez que o notasse ali, embora ainda estivesse decidindo se tinha sido uma boa ideia.

Porque, enquanto o árbitro não autorizava o reinício da partida, Stella não conseguia conter seus pensamentos de passearem por janeiro daquele ano. Ela fazia aquilo às vezes, quase como uma tentativa do cérebro de trazer de volta memórias que, pelo choque e a dor e o trauma, ela tinha esquecido. Lembrava da voz do irmão pelo telefone ao contar que a pessoa mais importante de sua vida havia falecido de um infarto fulminante durante a madrugada. Quando Stella estava do outro lado do mundo brigando em sua quinta semifinal do Australia Open.

As primeiras horas após abandonar o complexo e desistir do campeonato tinham sido marcadas por barulho e manchetes e suposições. Não demorou muito para a imprensa brasileira noticiar a morte de Francisco Amari. Ele seria sepultado no cemitério da Vila Carmosina, na cidade de São Paulo, onde tinha criado seus três filhos.

Stella não tinha nenhuma lembrança do enterro, e talvez fosse melhor dessa forma. Tinha viajado para o Catar no dia seguinte após enterrá-lo. Primeiro, porque não suportava ficar naquela casa, com todas aquelas fotos dele pelas estantes. Segundo, porque o tênis era a paixão de sua vida e, naquele momento, a terapia em meio ao luto.

Agora, meses depois, era um sentimento esquisito. Se sentia melhor e mais conformada, mas quando tudo aconteceu, a sensação era que Stella não tinha nada a perder. Com a catarse, veio o terceiro título em Roland Garros e quatro campeonatos WTA 1000 e 500, tudo em uma margem de cinco meses.

A imprensa chamava de milagre, como se nos primeiros dias, antes da vitória do WTA em Doha, não tivesse encerrado sua carreira com afirmações de que ela não voltaria para jogar a temporada. O emocional era algo muito importante num esporte como o tênis, mas, para sua própria sorte, Stella lidava com as coisas de maneira diferente.

Finalmente, o juiz fez o sinal para reiniciar, e o mundo pareceu voltar a girar. Tomou uma respiração, estreitando os olhos para o outro lado da quadra, para a atual número 5 do mundo, que parecia perdida na tensão do próprio corpo. A maior diferença é que, ao contrário de Jasmine Paolini, Stella era muito boa em fingir.

Mas ela não também era qualquer jogadora. Estava chegando em sua segunda maior semifinal do ano, após conquistar o vice-campeonato em Roland Garros apenas um mês atrás. Uma partida difícil, e talvez Jasmine ainda se lembrasse do rosto afiado de Stella, das provocações, dos murmúrios da público.

(I) 𝐀𝐌𝐀𝐑𝐈, gabriela guimarãesOnde histórias criam vida. Descubra agora