O sol já havia se escondido atrás das colinas quando João Maurício se sentou em uma poltrona na sala de estar da casa grande, cercado por um silêncio opressivo. Vestido de um terno escuro de tecido pesado, com um colete bem ajustado e uma gravata de cetim, ele se via como um símbolo da tradição e do respeito que a família Vanderley deveria carregar. Os detalhes do traje eram refinados, com botões de metal polido e um corte que realçava sua figura esbelta, mas a dor e o cansaço marcavam seu semblante. Ele não havia pregado o olho desde a morte de seu pai, e o peso da noite anterior, em que velou José, ainda o consumia.Durante aquelas horas intermináveis de vigília, João se lembrara da fragilidade do corpo de seu pai, e como a morte parecia ter roubado não apenas a vida de José, mas também parte de sua própria essência. Enquanto o cheiro de cera derretida e incenso ainda pairava no ar, o rosto pálido de seu pai refletia uma paz que ele não conseguia sentir. Ao seu redor, a sala estava decorada com flores brancas e velas acesas, uma tentativa de homenagear a vida de um homem que havia sido mais do que um pai — ele era um legado.
A atmosfera na sala estava carregada. Os convidados se acomodavam, sussurrando entre si, enquanto a luz das velas tremeluzia, lançando sombras que dançavam nas paredes. O murmurinho era ininterrupto, mas João não podia deixar de notar o olhar de desprezo que alguns lançavam em sua direção. Eles eram figuras conhecidas, homens e mulheres que, em outras ocasiões, o teriam cumprimentado com cordialidade, mas que agora, por trás das aparências, se revelavam em sua verdadeira essência.
Dona Francisca, sua tia, exibia um semblante de superioridade, vestida em um elegante vestido preto de seda, com rendas e bordados que destacavam seu status. Ela falava com ares de autoridade, gesticulando com um leque delicado que parecia um símbolo de sua influência e poder. O olhar dela cruzou com o de João, e ele sentiu a hostilidade que emanava dela como um veneno.
— José sempre foi um homem de decisões claras — ela dizia, a voz melodiosa e ao mesmo tempo cortante, atraindo a atenção dos presentes. — Ele me deixou um legado que é, sem dúvida, dignificante para a nossa família. E, embora haja a preocupação com a continuação dos negócios, ele também fez questão de deixar claro que o Engenho Gindaí deve permanecer sob a administração de quem realmente pode cuidar dele.
Os murmúrios dos convidados se intensificaram, e João se permitiu ouvir as palavras que a tia proferia. O peso das suas ações e das últimas vontades de seu pai parecia se tornar um fardo insuportável. Ele notou os rostos conhecidos que sabiam da sua origem, e cada um deles parecia se regozijar com sua miséria.
— O que ele realmente pensou ao me nomear como seu sucessor? — murmurou João, a voz trêmula ao refletir sobre a ironia de ser chamado de herdeiro. Ele era um bastardo, um homem de cor que, em tempos de tantas convenções sociais, deveria estar relegado a um espaço inferior, mas que agora ocupava o centro das atenções.
Dona Francisca continuava a falar, suas palavras pesadas como chumbo.
— Acredito que, mesmo em sua fragilidade, José quis ser generoso. Ele me deixou um par de escravos, é verdade, mas a maior parte de sua herança, em sua sabedoria, foi destinada a João Maurício. Um rapaz inteligente, mas, como todos sabem, nunca poderá ser verdadeiramente um Vanderley.
As palavras cortaram João como uma lâmina. A menção a seu sobrenome era um lembrete constante de que ele carregava o peso de um legado que, para muitos, não lhe pertencia de direito. Ele se sentiu encolher sob a tensão do olhar dos convidados, que esperavam por sua reação, como se quisessem ver a frustração ou a indignação em seu rosto.
Dona Francisca, então, levantou-se e se dirigiu aos convidados, com um sorriso que mal escondia seu desdém.
— E mesmo que a vontade de meu irmão tenha sido clara, cabe a nós garantir que o legado da família Vanderley não caia nas mãos erradas.
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Um legado de sangue e açúcar
Ficción históricaEm meio aos vastos canaviais do Engenho Gindaí, localizado nas terras de Rio Formoso, então pertencentes à antiga comarca de Sirinhaém, João Maurício Vanderlei, filho bastardo de uma escrava com o senhor das terras, vê-se alçado à condição de herdei...