A noite.

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Quase uma entidade, Seu Zé só aparecia depois das 18h, quando o sol já tinha se posto. Ele era facilmente encontrado em qualquer boteco do Morro do Jacarezinho, cambaleando de um lado para o outro com seu copinho americano, ora cheio de cachaça vagabunda, ora de cerveja. Cantarolando um velho samba ou contando suas inúmeras histórias para um grupo de ouvintes curiosos, ele era respeitado por todos os malandros e odiado por muitas igrejas. Não foi o marido mais dedicado nem o pai mais presente. Quando sóbrio, até se sentia culpado por isso, mas agora era tarde demais. Todos já tinham ido embora, e os meninos não queriam mais sua companhia. Soube recentemente que é avô, queria conhecer a menina mas parece uma ideia distante e inalcançável. Esses pensamentos o atordoavam nos poucos momentos de sobriedade, por isso seus olhos raramente estavam na cor natural, geralmente avermelhados, revelando seu gosto pela bebida do país que é casa da cana-de-açúcar.

Durante o dia, algumas línguas diziam que ele trabalhava na Lapa vendendo amendoim, aí ele era José do Amendoim. Outros acreditavam que ele só se materializa na porta do boteco mais chinfrim ao pôr do sol, vestindo sua camisa listrada, bermuda jeans e chinelos outrora brancos. Aí era o Seu Zé, o maior boa-praça do Jacarezinho e redondezas.

Agora se encontrava meio acamado, embora não deixasse ninguém saber. Sentia dores na barriga, suspeitava ser o fígado, mas não parava com seus antigos hábitos. No fundo, preferia ir dessa para uma melhor com o legado da lenda que era. O seu maior medo era sair dessa vida sem ser ninguém. Por meio acadêmico não deu, a enxada o recompensou com alguns cruzeiros mais rápido que a caneta. Teve uma época que tentou ser vereador, mas sempre se considerou um anarquista e não conseguiria seguir na carreira política, onde deveria escolher um lado, ele tá do lado dele e ponto. No exército foi preso algumas vezes, seguir ordens nunca foi seu forte.

— Seu Zé, conta aquela das galinhas! — alguém gritava. Ele sorria, um sorriso cansado, e começava a narrativa que todos já conheciam, mas nunca se cansava de ouvir. Enquanto a história fluía, ele se perdia nas palavras, esquecendo-se por um breve momento das dores que o acompanhavam.

— Estava eu e o Joca voltando do Marcelão, a gente já tinha tomado umas boas.

— sorrindo, ele fez uma pausa dramática. — Estávamos subindo o morro quando passamos por um galinheiro...

— E aí, o que vocês fizeram? — perguntou um dos jovens que ainda não tinham ouvido a história.

— Bom, cabeça vazia é oficina do diabo e não deu outra: pulamos a cerca e começamos a pegar as galinhas. — Algumas risadas já começavam a surgir à medida que a história se desenrolava. — Só que aquele Zé Ruela do Joca sempre foi um desastrado. Cês acreditam que ele deu um trupico em um monte de caixas, fez um barulhão desgraçado e o dono da casa acordou. Só sei que foi uma gritaria e um pega pra capar.

Os presentes batiam nas mesas de plástico amarelo e riam alto, até lacrimejarem.

— E como vocês escaparam? — perguntou um garoto, limpando o canto dos olhos.

— Corremos como se o próprio diabo estivesse atrás da gente! Eu com duas galinhas debaixo do braço e o Joca mais atrás, cagado de medo. No final, conseguimos escapar. Joca ganhou uma galinha de estimação e fizemos um churrasco na laje!

Todos ao redor da mesa caíram na gargalhada, e Seu Zé sorriu, tomando um gole de sua bebida. Ele se sentou em uma cadeira próxima, permitindo-se observar. Nesses momentos, pensava que dinheiro não era tudo. Tudo bem que ele nunca teve a experiência de realmente ter dinheiro, desde que se entendia por gente se recorda de estar correndo atrás dele, mas naquele momento, para o Seu Zé, o que importava eram as histórias, as risadas, os amigos. Isso ninguém nunca tiraria dele.

— Você devia escrever um livro!

— Livro? Mal sei escrever meu nome, garoto. — Riu Seu Zé, balançando a cabeça negativamente. — Um dia cê escreve pra mim.

A noite continuou com mais casos, risadas, rodas de samba e copos cheios. Um pouco antes do nascer do sol, Seu Zé decidiu que era a hora de ir para casa. Cambaleando, ele se despediu dos amigos que ficavam e fez seu caminho até seu barraco. Os pensamentos já eram confusos para ele mesmo, sentia uma ardência na garganta e náuseas. Algumas pessoas faziam o caminho inverso dele, enquanto ele subia para dormir algumas horinhas antes de ir a labuta, muitos moradores desciam o morro para conseguir pegar a condução para seus trabalhos.

Seu ZéOnde histórias criam vida. Descubra agora