1693 - Salém
Quando a conheci, foi o meu primeiro contato com a vida, com a euforia do sentimento de estar e desejar a vida mais que a morte. Embora estivesse trajada de sangue e pouca honra, em seus olhos havia um azul infindo que denunciava suas ambições e desejos. As bochechas coradas, os lábios inchados pelo morder de um êxtase, os cabelos desgrenhados como quem vencera uma luta. E vencera. Ao seu redor, corpos empilhados em diferentes posições, marcas severas de ataques diretos, secos de magia e vida. Ela as drenara, até a última gota de alma e poder. Essa constatação explicava a névoa púrpura que a cobria, mesclando-se ao sangue de seus inimigos. Notei que alguns corpos eram apenas corpos e provavelmente deles viria o sangue humano demais para a situação que presenciara. Sem misericórdia, ela levara até mesmo aqueles que nada tinham a lhe oferecer além da vida mortal de poucos e míseros anos.
Levou um tempo até que ela percebesse a minha presença, estava inerte em sua sede fervorosa pelo momento degustado. Era quase possível sentir o gosto da magia em seus lábios, mesclando-se à um filete vermelho que do canto da boca escorria. Era esse o sinal de humanidade que havia naquela fera?
Inclinei a cabeça, analisando com curiosidade, meus olhos quase ansiosos por mais do que parecia um espetáculo. Ela virou bruscamente procurando os olhos que a encararam e não encontrou. Eu a deixaria me sentir, mas não lhe mostraria minha face. Caminhei por sobre os escombros, cumprindo meu trabalho com êxtase, pendurando sobre os ombros as almas daqueles que às possuíam e separando os corpos secos das bruxas para transformá-los em cinzas. Ela sabia que alguém estava ali e o fato de não enxergar a deixava frustrada.
A euforia daquele momento, pouco a pouco, foi deixando seu corpo, a trazendo para a realidade, ansiando por mais de um pequeno momento. Era curiosa a forma como ela se portava, roupas soltas demais para aquela época, demarcando somente parte de sua silhueta quase coberta por cabelos negros e longos, desgrenhados pela luta. O suor escorria pela lateral de seu belo rosto, morrendo em seus lábios grandes e finos. O arfar do peito lhe dava um ar animalesco, ainda assim, observando seus traços, não deixava de ser delicado. Um balanço das mãos e uma dança de dedos, uma pequena névoa roxa e ela estava recomposta e alinhada. Uma bruxa. Uma bruxa caçando outras bruxas.
Sentei-me, ainda que não houvesse a necessidade de descanso, apenas para observá-la enquanto refletia encarando suas mãos, brincando quase que de maneira infantil com seus poderes. Não demorei a perceber sua habilidade de absorver.
Embora eu estivesse em tantos lugares e em lugar nenhum ao mesmo tempo, por alguns instantes me senti completamente ali, inerte pelo interesse em outro ser, saboreando uma companhia que não tinha conhecimento visível de minha presença, mas que sabia que eu estava ali. Ficou claro, no momento em que ela se sentou à minha frente e encarou-me como se fosse possível me enxergar.
"O que é você?" Perguntou mais a si mesma do que para mim e tal fato me fez sorrir, era bom jogar com alguém, entreter-me com algo que não fosse o meu dever.
Ousei levantar e sentar-me ao seu lado, inalando o cheiro que emanava de sua pele. Era diferente. O sentimento era diferente. Embora me chocasse uma bruxa caçando suas irmãs, não havia como negar como ela era singular e bela. Neste momento, fragmentos de lembranças ecoaram minha mente, palavras e promessas de amores que não pedi e não me interessavam. Agentes da morte e genocidas prometendo-me tudo aquilo que já possuo, causando guerras na busca de uma manifestação minha que nunca aconteceu. Grandes esforços não me cativavam e havia muito mais a se fazer do que envolver-me com outro ser. Mas ali estava, envolvida, cativada, curiosa. Desejei, pela primeira vez, manifestar-me em minha forma mais pura, mas me contive. Não queria que sua primeira impressão fosse o deslumbre ou o fascínio pela morte. Aguardaria o momento certo, enquanto isso, não seria necessário cercá-la, visto que certamente eu a encontraria novamente. Em breve.
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wounds | agathario
FanfictionDos romances já escritos e contados ao longo da história, este, com absoluta certeza é um dos mais trágicos e insanos, capaz de fazer sentir àquele que nunca sentiu, a tocar o céu quem sempre esteve no calor do inferno. À desejar, ardentemente, a ch...