Reconhecer Miranda foi como desfolhar um livro cujas páginas estavam deliberadamente entreabertas, mas nunca completamente à mostra. Havia um mistério suave e profundo que permeava sua presença, como se cada movimento, cada olhar carregasse um segredo à espera de ser revelado – ou, ainda, quando mais cavados fossem, mais determinados eram a se esconder de novo. O que havia entre nós, ainda em fase de descoberta, era algo diferente, algo que me provocava uma sensação peculiar, algo que eu não havia experimentado com nenhuma das mulheres que antes haviam cruzado o limiar deste estúdio porque havia uma breve diferença entre ela e as outras. O passado.
Naturalmente, antes que qualquer pensamento diferente pudesse tomar conta, nossas trocas de e-mails foram exatamente como eu esperava: profissionais e diretas. Talvez eu tivesse uma ponta de curiosidade sobre a vida dela, mas minha vontade de manter a compostura não me deixou ceder. Sua última visita, que não foi exatamente calorosa, acabou me surpreendendo, já que eu tinha uma ideia bem diferente de quem ela era naquela época. Pelo pouco que eu sabia, não parecia correto dizer que ela era realmente independente. Na verdade, havia algo nela que parecia... preso. Preso a alguma coisa que eu não conseguia identificar. As últimas pinturas que ela fez me deixaram curioso, e quando reli seu e-mail, comecei a me perguntar se, dessa vez, ela teria finalmente se desprendido daquele rosto que sempre parecia tão cheio de dor.
Quando abri a porta e a cumprimentei, foi como se o tempo não tivesse passado. Aquele rosto trazia as mesmas dores de antes, cada traço, cada linha parecia carregado de lembranças mal cicatrizadas. As cicatrizes, tanto as visíveis quanto as ocultas, ainda estavam lá, não precisava de um exame minucioso para perceber. Bastou um breve olhar para notar que o peso que ela carregava permanecia inalterado. Meu sorriso interno foi inútil. Por mais que eu quisesse suavizar o momento, meus lábios apenas se moveram de forma quase imperceptível, um esboço de sorriso forçado, que mal chegou a se formar no canto direito da boca. Era uma recepção fria, apesar do turbilhão de pensamentos que sua presença me causava.
Aquela pontada de culpa pela minha negligência com a própria educação sussurrou que, talvez, eu devesse agir de forma um pouco mais responsável. Seria mais maduro de minha parte recebê-la sem demonstrar qualquer preocupação com o horário. Afinal, se ela chegasse tarde, isso não me incomodaria. No máximo, eu suportaria o desconforto de mais alguns minutos de espera — e talvez o custo adicional de tempo perdido, algo que, no fundo, parecia irrelevante diante do que realmente importava naquele momento além de guiá-la pelas minhas salas e corredores desnecessariamente extensos.
Eu estava prestes a virar de costas e ignorar o cheiro florido dela que combinava aparente com o do ambiente até que nossa interação tivesse nos levado ao seu término e como eu reagi ao dizer que sentia muito. Ela mencionou o término com uma frieza que me pegou de surpresa, embora eu soubesse no fundo de minha alma que nossas últimas conversas remetiam que seu relacionamento sempre fora um campo minado. Mesmo assim, ouvir aquelas palavras me fez sentir um estranho vazio, como se o peso de algo que eu não entendia direito tivesse sido jogado sobre mim. Não era incomum ver relacionamentos desmoronarem, onde as expectativas entre homem e mulher se tornaram tão distorcidas, como se cada um estivesse lutando para manter um certo equilíbrio entre independência e companheirismo, sem jamais se render completamente a um ou outro. É curioso pensar em como, antigamente, a vida a dois parecia centrada numa ideia de união inseparável, enquanto hoje é mais sobre se manter inteiro e protegido, como se o amor fosse um jogo de forças opostas.
E, talvez por isso, eu não soubesse exatamente o que sentir, se o alívio por saber que ela estava finalmente livre de algo que supostamente a oprimia ou a estranha tristeza por perceber que, no fundo, todos nós estamos de alguma forma presos ao desejo de sermos amados e compreendidos, mas sempre com um pé atrás. O amor, nesse contexto, parecia menos sobre se entregar e mais sobre tentar controlar o caos que ele inevitavelmente traz. Mesmo sem querer, eu me perguntei se ela sentia o mesmo, ou se talvez, como tantos outros, ela simplesmente aceitava que era assim que as coisas funcionavam agora. Na verdade, entre um passo e outro, esperava que durante a pintura ela me contasse.
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Traços de Escarlate (+18)
RomanceMiranda é uma Social Media Manager na Digitaliza, uma grande empresa de marketing e gestão de conteúdo situada no centro de São Paulo. Miranda é uma mulher independente e bem-sucedida financeiramente, mas não pode dizer o mesmo de sua vida romantica...