• C A P Í T U L O S E G U N D O •

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Província nova-iorquina de Hattway
20 anos antes

Acorde. Está na hora.

Minha mãe havia passado a madrugada toda arrumando as malas. Já estava na hora? Olhei para o relógio redondo no alto da parede acima do corredor que dava para a cozinha. Eram 4h12 da manhã, o chão da sala ainda cheirava a álcool e tinha alguns resquícios de sangue respingados no canto da parede.
O rosto de minha mãe estava todo machucado, os nós de seus dedos estavam esfolados e havia várias amostras de DNA de meu pai grudadas embaixo do que havia restado de suas unhas quebradas. Porque ela havia apanhado com certeza, mas não sem revidar.
– Jocelyn, você está me ouvindo?! Eu falei que está na hora!
Diante desse grito, após presenciar o quase assassinato que havia se desenrolado em nossa casa ontem, eu sou tomada pelo medo e imediatamente me levanto, começando a me vestir.
Era meu aniversário, estava completando 5 anos de idade. Minha mãe havia prometido que faríamos um passeio no parque e que eu poderia comer o meu sorvete favorito, de pistache. Alguma coisa me dizia que aquele plano não iria se cumprir. Não fazia ideia para onde iríamos, mas com certeza não seria ao parque. Não queria irritar minha mãe, então me apressei em calçar os sapatos enquanto a observava enfiar mais itens dentro de uma sacola grande de lixo. A porta do quarto estava entreaberta e pensei em ir me despedir de meu pai, mas quando fiz menção de caminhar naquela direção, ela simplesmente apontou um dedo para mim e ficou me olhando feio, o que fez com que eu me detivesse imediatamente e pedisse desculpas com os olhos. Logo após isso, ela vasculhou algumas gavetas da cômoda da sala e quando não achou o que estava procurando, se endireitou e sumiu para os fundos de casa.
Nesse momento eu aproveitei para espiar pela fresta da porta.
Meu pai era um homem de mais ou menos 2 metros de altura, corpulento e pesado. Trabalhava mais que 12 horas por dia todos os dias e o restante do tempo passava bebendo algum tipo de álcool muito forte. Isso queria dizer que ele roncava – e roncava pra caramba.
Mas nesse momento eu não estava ouvindo nenhum som na casa, na verdade estávamos mergulhados em um silêncio ensurdecedor. Será que ele não estava em casa? Mas eu não o tinha visto sair, geralmente ele fazia barulho porque sempre esbarrava em alguma coisa.
Passo a mão pela porta, fazendo-a deslizar sutilmente, abrindo espaço suficiente para que eu consiga passar. Escapo para dentro do cômodo e vejo que ele está deitado na cama, de costas para mim, então me apresso e dou a volta para conseguir vê-lo. A luz do poste que fica na rua de casa ilumina o quarto através da janela e bate direto nele. Eu me aproximo, observando seu rosto.
– Pai. – digo baixinho, num sussurro urgente. Sinto que não tenho muito tempo. – Pai, acorde. Eu estou indo embora.
Encosto o dedo indicador em sua bochecha, mas ele permanece imóvel. Seus lábios estão entreabertos, o cabelo grisalho está revolto e a camisa está amarrotada e abotoada nos intervalos errados entre os botões.
– Pai. Você não vai me dar tchau?
Tento empurrar seu ombro para cima e nessa hora seu corpo se mexe um pouco, inclinando para o lado. Meus olhos são atraídos para um líquido espesso e vermelho que se aglomera abaixo dele formando uma mancha enorme no colchão.
Pai? – minha voz soa entrecortada. Separo um pouco a camisa dele e percebo a fonte do corte, numa região próxima a barriga. Tem outro corte no meio do peito. E assim como uma árvore de natal que se acende em vários pontos, de repente estou enxergando milhares de outros machucados no corpo dele.
Meus olhos se enchem de lágrimas. Ele não era o melhor marido do mundo, na maior parte do tempo estava bêbado demais para fazer parte do presente, mas ele era um bom pai para mim, ás vezes. Eu gostava dele. E agora ele estava...
Pai, você está bem? – pergunto debilmente, começando a chorar. Passo a mão em seu rosto, dessa vez de forma mais firme, balançando seu tronco e arrumando seu cabelo, jurando que esses gestos poderiam trazê-lo de volta, pelo menos por tempo suficiente para ele me dizer o que nunca tinha me dito. Talvez que me amasse? Ou que gostasse de mim, pelo menos um pouco? Os pais deveriam dizer isso para os filhos, certo? O pai de Karen Mackenzie, a garotinha mais popular da escola, falava aquilo em voz alta para ela todos os dias quando a deixava na frente do portão da RightWay.
– O que você está fazendo, Jocelyn? Venha já aqui. – minha mãe aparece no quarto e me puxa para fora, pelas orelhas.
Meu choro triplica de intensidade.
– Ai! – solto um grito e tento me desvencilhar dela. –  Eu-u fui me despedir! O pai está morto? – pergunto em meio as lágrimas com a voz descontrolada.
– Cale a boca, Jocelyn! Não faça barulho! Vá pegar sua mochila.
Ela me empurra na direção de onde minhas coisas estão armazenadas dentro de sacos de lixo, junto com minha mochila da escola. Caio sentada no chão e me apoio no sofá. Levanto o olhar para ela com o coração inflamado dentro do peito.
– Você matou o papai! – exclamo, a plenos pulmões, sentindo muitas coisas ao mesmo tempo que eu não tinha muita noção do que eram exatamente. Raiva? Tristeza? Confusão? Desespero? Talvez uma grande mistura de todos.
– Aquele desgraçado teve o que merecia. E acho bom não encher minha paciência senão você vai ver só o que vou fazer com você.
Olho para baixo e tento respirar. Não queria ir a lugar nenhum com ela, mas sabia que não tinha escolha. Coloco o casaco porque fazia pelo menos 7 graus lá fora, o inverno estava em sua intensidade máxima.
Com mais bagagem do que era possível conseguirmos carregar, cruzamos as ruas de nosso bairro, com a neve açoitando nossas faces. O trajeto inteiro fazíamos em silêncio, ela não me dizia para onde estávamos indo ou o que iria acontecer dali em diante e eu não estava com a menor vontade de perguntar. Fiquei repassando os eventos da noite anterior na cabeça, tentando decifrar em qual intervalo de tempo aquele ato terrível teria acontecido. Eu não havia dormido muito, praticamente piscado os olhos antes dela me chamar dizendo que estava na hora de partir – ou pelo menos essa era a percepção que eu tinha. Me lembro que meu pai havia chegado bêbado mais uma vez, tropeçando na mesa de centro da sala e se espatifado no chão, com milhares de cacos de vidro voando para todos os lados.
Ele e minha mãe iniciaram uma discussão por conta daquilo que rapidamente escalou para uma briga de punho – ele começou a bater nela, ela começou a revidar e a coisa ficou feia. Aquilo durou um tempo considerável e eu cheguei a me esconder embaixo da mesa da cozinha como sempre fazia. E peguei no sono por lá mesmo.
É verdade. Eu não me lembrava de ter ido para o sofá. Não me lembrava de mais nada entre ter adormecido naquele chão frio e acordado com minha mãe me sacolejando. Naquele dia de manhã, quando passei pela rua na hora de ir para a escola e vi meu pai dirigindo o caminhão para o trabalho, se eu soubesse que seria a última vez que o veria com vida, eu teria feito bem mais do que apenas acenar de longe para ele.
Chegamos perto de uma construção gigantesca de pedra, depois de passarmos por uma ruela deserta que cortava por dentro de um pequeno bosque. Os portões de ferro da propriedade estavam destrancados o que me levou a pensar que havia alguém esperando pela gente, pois minha mãe apenas empurrou e ele cedeu, rangendo violentamente enquanto abria espaço para nós duas passarmos. Havia uma muretinha na frente da imensa porta de madeira da entrada, minha mãe passou os pés ali para retirar o excesso de neve do chão e descarregou minha bagagem perto da parede: um saco de lixo preto cheio pela metade e a mochila que eu carregava nas costas.
– Onde estamos, mãe?
Não tive resposta. Foi como se não tivesse me ouvido. Em vez de dizer alguma coisa ela simplesmente bateu a aldrava da porta seis vezes com força, fazendo um enorme estardalhaço. Após isso, endireitou a bolsa no ombro, agarrou suas próprias sacolas, virou-se e começou a se afastar.
– Mãe? Você está indo fechar o portão?
Ela não respondeu de novo. Também não olhou para mim. Quando chegou ao portão, passou por ele e caminhou em direção ao bosque por onde havíamos chegado. E sumiu.
Meu cérebro levou alguns minutos para processar. Larguei a mochila no chão e comecei a correr.
– Mãe, você está indo para onde?! – meus pés afundavam na neve que havia se aglomerado, parecendo areia movediça. Aquela região era mais arbórea, consequentemente nevava muito mais. O frio queimava minha pele, mas eu não conseguia me render. Continuei correndo e atravessei o bosque – ou pensei que tivesse atravessado. Estava perdida.
Tropecei num galho e caí, mergulhando no frio. A dor me atingiu de forma violenta, junto com todas as outras dores que havia sofrido naquela madrugada. Eu não estava entendendo mais nada. Estava sem chão.
Menina. – escutei uma voz feminina atrás de mim, sentindo mãos envolverem meu tronco e me suspenderem do chão.
Levantei o rosto e encontrei dois pares de olhos azuis cristalinos que brilhavam na penumbra da noite se transformando em dia. Era uma mulher, usando uma espécie de manto que cobria seu corpo inteiro e só deixava parte da face à mostra. Eu não conseguia ver seus cabelos.
– Pobrezinha, deve estar congelando.
Sua voz era tranquila, ela me segurava nos braços com estranha facilidade e eu estava confusa demais para fazer qualquer pergunta ou objeção. Apenas aceitei que aquela estranha me levasse e fiquei olhando para trás, em direção ao bosque, como se houvesse alguma ínfima possibilidade de minha mãe aparecer e dizer que tudo aquilo havia sido um engano, que ela só tinha ido ali e já estava voltando, que aquela mulher poderia tirar as mãos de sua filha.

Mas eu estava contando com um milagre que jamais aconteceria.

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