• C A P Í T U L O Q U A R T O •

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"I don't wanna know all your secrets 'cause I'll tell
It's hard enough being alone with myself
I don't know how long I'll be holding on..."

Colégio RightWay – 2015

– Atrasada de novo, Jocelyn Hazel. – professora Morgan Rider folheava um pesado livro de matemática nos braços enquanto batia no relógio de pulso para me repreender. – Hoje foram 47 minutos.
Continuei andando em direção a minha cadeira, mas ela não parou de falar:
– Estou falando com você, garota.
Me virei e senti a cabeça pesar com o movimento repentino.
– Eu entendi, srta. Rider. Me desculpe.
– Não quero desculpas. Pegue suas coisas e vá para a detenção.
Fiquei olhando para ela por uns segundos. Meu cérebro ainda estava lento por conta de tudo que havia acontecido de madrugada.
Eu entendi, srta. Rider. Me desculpe. – repeti as palavras e soltei a mochila em cima da mesa.
Comecei a ouvir um zumbido de risadas e murmúrios entre meus colegas.
– Ela está completamente chapada, olhem só para ela! – alguma das meninas exclamou alto o que levou todos a caírem na risada, dessa vez sem preocupação com o volume.
Minha cabeça estava latejando com o barulho.
– Jocelyn, não teste a minha paciência. – professora Rider agarrou minha mochila e me puxou pelo braço em direção a saída. – Detenção. Agora. – com a voz firme, me empurrou para fora e fechou a porta com um estrondo.
Eu estava confusa. Por que ela não podia apenas me deixar assistir a droga da aula? Pensei em ir para o banheiro, mas não conseguia me lembrar direito o caminho. Comecei a andar a esmo pela escola murmurando pedidos de desculpa para a professora, por mais que ela já não pudesse me ouvir. Minha mente estava embaralhada. Os pensamentos não formavam nada coerente, pareciam se perder no meio da tentativa, como se meu cérebro estivesse se dissolvendo feito areia movediça. Eu queria água. Eu queria me deitar. Aparentemente os esforços que tiveram no hospital não haviam ajudado em nada.
Alguém precisa acionar o conselho tutelar.
Ela está fora de controle!
Como pode? Apenas 15 anos de idade e vive assim tão perdida.
Vocês estão vendo os olhos dela? Meu Deus, esse mundo está perdido mesmo.
Passei por algumas senhoras no corredor que desferiram os mesmos comentários de sempre. Eu estava entorpecida demais para me importar ou para responder alguma coisa.
Vaguei pelos corredores da escola até ser atingida pela claridade das portas de entrada que eram de vidro e refletiam a luz do sol que vinha do lado de fora. Apesar de meus olhos começarem a queimar, apenas segui naquela direção sem hesitar, até estar do lado de fora, enxergando a grande praça que ficava três quadras acima da RightWay. Quando dei por mim, já estava no parquinho e a última lembrança que tive foi de adormecer dentro de um dos túneis amarelos que as crianças usavam para brincar de esconde-esconde.

Acordei muitas horas depois, num sobressalto.
Me levantei rápido demais e bati a testa no topo do túnel, caindo para trás novamente. Respirei fundo.
Coloquei a mão direita no meio do peito.
Estou bem. Estou viva.
Olhei no relógio de pulso – já eram 3h47 da madrugada. Fechei os olhos com força imaginando o problema que teria caso aparecesse na casa do Sr. Hareford aquele horário. Já conseguia até sentir vários locais de meu corpo doendo com os golpes que ele me daria por ser tão malcriada assim.
Pensei ter ouvido passos do lado de fora do parquinho, mas não me atrevi a olhar. Em vez disso encolhi as pernas, me escondendo mais ainda no interior do túnel. A luz do poste fazia sombras pela superfície de plástico do brinquedo, mas não chegava a ser transparente. Realmente tinha alguém e estava cada vez mais próximo de mim. Prendi a respiração e abracei os joelhos, sentindo o coração martelar nas orelhas. Aquela era uma sensação estranhamente conhecida.
Olhe só o que temos aqui... – era um homem de meia idade, com roupas sujas e uma espécie de manto enrolado nos ombros. Ele exibiu um sorriso sinistro que fez todos os pelos de meu corpo se eriçarem. – Então não estou mesmo ficando maluco. Pensei ter ouvido um suave ronronar de uma gatinha dormindo... e eu estava certo.
Ele fedia a cigarro e a pele suja. Me lembrava o cheiro do Sr. Hareford. Senti o estômago embrulhar.
– O que você quer? – reuni coragem para perguntar. – Não tenho dinheiro nem celular aqui comigo. Não tenho nada que lhe interesse.
Ele riu. Uma risada histérica, grotesca e nojenta. Um som terrível que eu jamais esqueceria.
– Ah, mas você não poderia estar mais enganada, minha princesa. – meus olhos queimaram diante do tom sugestivo. Quem ele pensava que era? Antes que eu pudesse responder, o desgraçado avançou dentro do túnel, segurando meus calcanhares. – Você tem algo que me interessa muito.
– Se não tirar essas mãos sujas de mim agora, você vai se arrepender! – exclamei enquanto ele me arrastava para fora do brinquedo, me jogando no chão e se atirando para cima de mim.
Comecei a espernear diante de suas tentativas de me despir e desferi uma joelhada em seu abdômen. O homem arfou e se pôs de pé ao mesmo tempo que eu. Ainda sorrindo, balançou a cabeça.
– Continue bancando a difícil. Isso torna tudo mais interessante.
Definitivamente aquele homem não fazia ideia de com quem estava lidando. Quando avançou em minha direção mais uma vez e tentou agarrar meus braços, saquei o canivete de prata do bolso traseiro de minha calça e investi com força contra seu corpo, atingindo-o profundamente no antebraço, rasgando sua pele do cotovelo até próximo ao pulso. Tentei acertá-lo ainda mais uma vez, mas a lâmina só passou de raspão em sua bochecha.
Ai! Sua desgraçada! Merda!– ele grita, gemendo de dor e se contorcendo, não conseguindo decidir se balança o braço no ar ou o traz para perto de seu próprio corpo. – Vou chamar a polícia! Você é maluca! Olha o que fez comigo! – o homem grita debilmente enquanto enrola o braço na manta, tentando desesperadamente conter o líquido que fluía como água corrente empoçando e sujando todo o chão de concreto do parque.
Avanço dois passos em sua direção, segurando a faca suja de sangue entre nossos rostos com as mãos trêmulas e os olhos queimando.
– Se aproxime de mim outra vez e eu corto sua garganta.
O homem engole em seco e começa a se afastar, mantendo os olhos nos meus e caminhando de costas, quase tropeçando. A certa altura, começa a correr e desaparece na escuridão. Espero que sangre até morrer, velho nojento. Só então percebo que uma chuva fina estava caindo. Após limpar a lâmina do canivete na camisa e o guardar de volta em meu bolso, decido caminhar até o bosque, que não estava muito longe. Já passei muitas noites na rua, mas hoje especialmente não estava com ânimo para dormir ao relento, não depois daquela situação desastrosa que havia acabado de acontecer.
A província novaiorquina de Hattaway era mesmo um lugar muito curioso. Como entender o sentido de um caminho que passa por dentro de uma floresta fechada e afastada parecer mais seguro que um parque no meio de um bairro residencial familiar no centro da cidade? Quanto mais eu pensava, menos sentido fazia. Mas era verdade. Quando cruzava a alameda que dava de frente aos enormes portões de ferro do orfanato St. James, me sentia estranhamente segura. Às vezes eu tinha a sensação de que mesmo depois que crescesse, mesmo depois que conseguisse dar o fora daquela província, ainda assim... só me sentiria segura dentro do pátio daquele orfanato.
Bati a aldrava da porta da frente e abracei o próprio corpo, esperando que alguém viesse me atender.
Escutei a madeira rangendo lentamente enquanto se movia para dentro, revelando irmã Judy parada com uma expressão de preocupação no rosto.
– Hazel! É você de novo, minha filha. – os olhos cinzentos e carinhosos me analisaram. Em alguns segundos de hesitação, a freira conseguiu observar minhas mãos trêmulas e alguns resquícios de sangue em minha camisa de botão que algum dia havia sido branca. – Venha, deve estar com frio, estão caindo navalhas afiadas hoje.
Chuva de navalhas afiadas. Era uma expressão que os provincianos utilizavam para se referir ao chuvisco prévio da mudança de estações em Hattaway. Realmente pareciam pequenas navalhas açoitando nossas peles – indício principal de que o inverno estava próximo. Eu detestava o inverno e detestava Hattaway. Sonhava com o dia em que faria minhas malas e partiria daquele lugar sem nunca mais olhar para trás.
Sentei-me na mesa redonda da copa das freiras. Judy havia colocado a chaleira no fogo e aprontava algo na pia da cozinha que eu não conseguia ver o que era. Enquanto isso, lhe contei todos os eventos que haviam acontecido desde a noite do dia anterior. Ela ficou em silêncio um bom tempo, absorvendo e digerindo todas as informações. Descansei a cabeça entre as mãos, sentindo a alma pesada, sensação esta que me perseguia diariamente. Por longos minutos o apito da chaleira era o único som preenchendo o silêncio. Flashes do Sr. Hareford piscavam em minha mente, seguidos do homem do parque. Me parecia muito provável que a próxima vez em que eu adormecesse, teria pesadelos com aquele velho nojento – sua expressão, seu riso, as palavras, o sangue escorrendo no chão...
– Coma isso, minha filha. – Judy colocou um prato a minha frente composto por duas fatias de pão de forma com presunto e queijo, biscoitos de leite e uma generosa camada de geleia de uva em cima de pequenas torradas. – E beba o chá verde que fiz para que se aqueça um pouco. Vou buscar roupas limpas e secas para você.
Antes que eu pudesse protestar, ela já havia sumido. Judy cuidava muito bem de mim, todas as vezes em que eu batia a porta do orfanato – que não eram poucas.
Em meus dois primeiros lares, aquilo não acontecia com tanta frequência. Eu vinha visitá-la sim, ao menos uma vez por mês. Mas era muito mais por saudade que por qualquer outra coisa. Por mais que minhas duas primeiras carrascas não tivessem sido tão ruins, ainda assim, nada nem ninguém se comparava com a Judy.
Mas tudo havia mudado quando o Sr. Hareford decidiu me adotar. Já estava para completar 1 ano que eu morava em sua casa e até o presente momento, ainda não compreendo os motivos que o levaram a ter permanecido comigo.
Claro que eu fazia de tudo para agradá-lo e para cuidar de seu lar. Eu cumpria minhas obrigações direitinho. Ainda assim, ele fazia muitas coisas erradas, me batia sem motivo ou aviso prévio e era uma pessoa ruim. Além disso, a maioria de suas atitudes eu não conseguia entender nem mesmo um pouco – e para ser franca, nem sei se quero. Tudo que eu sabia sobre a nossa dinâmica era que ele exercia um grande poder sobre minha vida – e um poder maior ainda sobre minha sobriedade. O Sr. Hareford era o responsável por decidir quando eu dormia ou deixava de dormir. E por algum motivo desconhecido, ele preferia que eu estivesse dormindo quase que o tempo todo. Esse era o principal motivo para eu passar a maior parte do tempo fora de casa. Eu queria sentir que tinha ao menos um pouco de controle sobre minha própria vida.
Tentei inúmeras vezes retornar para o St. James, mas as portas daquele lugar haviam se fechado para mim no exato dia em que eu havia sido adotada pela primeira vez, com 9 anos de idade.
Tudo que me restava era buscar refúgio nos braços de Judy toda vez que minha realidade se tornava assustadora demais para suportar. O que devo dizer, era quase sempre.
– Precisamos reunir provas contra ele. – Judy afirmou, colocando duas peças de roupa cuidadosamente dobradas a minha frente na mesa. Eu estava terminando de comer a última fatia de pão quando ela retornou.
– Você sempre diz isso.
– Precisamos tentar de novo, Hazel.
Já havíamos tentado mais de três vezes fazer com que o conselho tutelar atuasse e me tirasse das garras daquele homem. Mas Joseph Hareford era uma ratazana esperta, sempre conseguia se safar.
– Se continuar do jeito que está eu vou fugir. Vou embora dessa cidade. – afirmo sem olhar para ela, enquanto ajeito a calça dos pijamas que havia trazido para eu vestir.
– Você não pode fazer isso, minha querida.
Fico em silêncio sentindo os olhos inundarem. Ela tinha razão, eu não podia. Não conseguiria. Estava presa, à mercê dele, à espera de uma intervenção divina.
– Como vai se manter? – a freira prossegue me golpeando com a realidade. – Você é apenas uma adolescente. É muito perigoso.
– Então me deixe voltar! – viro-me para ela, enxugando o rosto apenas para abrir espaço para mais lágrimas caírem. Junto as mãos, suplicando por tudo que era mais sagrado no mundo. – Por favor, me deixe voltar para cá. Por favor.
Ela suspira e seu queixo treme levemente. Suas mãos estão atadas em cima do colo e ela as esfrega uma na outra, inquieta.
– Você sabe que isso é tudo que eu mais queria que acontecesse, Hazel. – seu corpo murcha na cadeira e ela cobre o rosto, suspirando. Ela se sentia impotente. E eu me compadecia sempre. Judy havia tentado inúmeras vezes me ajudar a voltar para o St. James. Mas a equipe por trás da administração do espaço dava um jeito de estragar tudo, todas as vezes. As pessoas que deveriam proteger meus interesses e zelar por mim, já que eu não tinha família, faziam de tudo para que eu continuasse longe e sofrendo. Eles não davam a mínima para as condições em que estivéssemos vivendo depois de sair do orfanato. Tudo que importava era que fôssemos embora e liberássemos espaço para outros órfãos entrarem. Esse era o destino de todas as crianças que deixavam o St. James – caso saíssemos, independente das condições do lar que nos aguardava do lado de fora, não havia mais nem mesmo uma ínfima possibilidade de retorno. E assim, em vez de sonhar todas as noites com o dia em que algum casal amoroso ou uma senhora de idade solitária visitasse o espaço a procura de uma criança para amar, todos nós temíamos a adoção, sentíamos como se fôssemos gado na fila de abate. Era muito raro o caso de algum de nós que saía do St. James para ser feliz. A maioria tinha que contar com a sorte – e sorte era a última coisa no mundo na qual um órfão depositava sua fé.
A única possibilidade de voltar seria no caso de falecimento do tutor e se nenhum de seus parentes quisesse assumir a guarda do filho adotivo.
Eu vou matar o Sr. Hareford. – afirmo, perfeitamente ciente da atrocidade que estava dizendo e fazendo Judy se sobressaltar na cadeira, arregalando os olhos.
– Não diga isso nem de brincadeira!
– Judy, eu queria que ele morresse! Queria que ele morresse hoje!
Ela balança os braços no ar de forma inquieta e repreensiva.
– Deus não pode ouvir isso saindo de sua boca, Hazel. Não diga isso, desejar o mal para ele pode se reverter contra você.
Mais ainda?!
– Hazel, eu sei que é difícil minha filha, mas você precisa ter esperança. Precisa ter .
Deus não está nem aí para mim, irmã Judy.
Lágrimas caem de seus olhos cinzentos. E caem dos meus também. Ela ficava muito triste quando o meu sofrimento me fazia blasfemar e desdenhar do nosso amado Senhor Jesus Cristo. E por mais que eu nunca tenha sentido que esse Cara algum dia teve compaixão de mim, Judy era sua fiel serva. E me cortava o coração deixá-la triste.
– Me desculpe, Judy. – me jogo aos seus pés, afundando o rosto em seu colo. – Eu não aguento mais. Vou acabar cometendo uma loucura.
– Tenha calma. – ela suspira pesadamente, parecendo quase tão exausta quanto eu. – Sei que vamos conseguir encontrar uma solução para tudo isso. Você é uma menina extraordinária. Merece muito mais do que a vida tem-lhe oferecido.
Extraordinária? Tudo que eu mais queria na vida era ser tediosamente comum. Com um lar comum, pais comuns e uma rotina comum. O preço de ser uma pessoa extraordinária era caro demais.
Judy acaricia meus cabelos e começa a cantar. Sua voz dança e se mistura com a angústia que despejo em suas roupas, encharcando o tecido branco de sua batina.

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⏰ Última atualização: Nov 03 ⏰

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