Prólogo: Mortos não sentem.

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O frio era de cortar a alma, como se o inverno estivesse determinado a congelar o mundo inteiro. A cidade, acostumada com mudanças de clima extremas, enfrentava uma de suas piores nevascas. Nos últimos anos, as coisas haviam mudado: espectros, criaturas misteriosas e imprevisíveis, haviam se tornado uma parte comum da vida, forçando os humanos a se adaptarem. Mas, claro, o planeta estava longe de ser o mesmo. Enfraquecido. Doente.

Espectros. Uma palavra simples para coisas complexas. Eles podem ser criaturas, lugares, objetos-não importa. Tudo o que você precisa saber é que, em geral, eles são uma dor de cabeça. Alguns são perigosos. Outros, estranhamente gentis. Mas, independentemente da natureza, sempre trazem problemas. E, para lidar com eles, surgiram os Xamãs. Humanos com poder o suficiente para lutar contra essas entidades. Um trabalho infernal, se você perguntar a qualquer um que se importe.

É sempre a mesma história: Xamãs lutam, Xamãs morrem, novos Xamãs aparecem. A roda continua girando, e poder se tornou tanto uma bênção quanto uma maldição. Quem tem demais, vira ferramenta. Quem não tem, vira vítima. Ninguém realmente ganha nesse jogo.

Mas naquele dia - 05 de dezembro de 2020 - algo incomum estava prestes a acontecer. Nos confins de um enorme cemitério, feito para abrigar as memórias de milhares de mortos, havia um garoto deitado sobre um túmulo, completamente ensanguentado. Suas roupas estavam em farrapos, sua pele pálida contrastava com o vermelho do sangue que ainda escorria por seu corpo. Ele tinha dezesseis anos. Apenas mais um xamã em meio à tempestade de neve.

Uma senhora, provavelmente com uns quarenta anos, observava o garoto enquanto se protegia da neve com um guarda-chuva velho. Ela o conhecia, ou melhor, havia o visto algumas horas antes.

- Ei, você destruiu meu telhado. - a mulher disse, com um tom casual, como se estivesse falando do tempo.

- ... Desculpe... - a resposta dele saiu fraca, quase sem vida.

Ela acendeu um cigarro, soltando uma nuvem de fumaça que logo se dissipou no vento gelado. Havia algo de estranho nele, pensou. Mesmo com o corpo dilacerado, o garoto parecia completamente indiferente à dor, ao frio... a qualquer coisa. Ele era um monstro.

- Você fez uma bagunça - continuou ela, olhando para o túmulo embaixo do garoto. - Essa cova onde você está deitado deve ser de alguém. Aposto que essa pessoa está bem irritada com você agora, não acha?

- ... Mortos não sentem raiva... - murmurou ele, a voz saindo como se estivesse falando algo óbvio.

- Ah é? - ela arqueou uma sobrancelha. - Engraçado ouvir isso de um xamã. Vocês não falam com espíritos o tempo todo?

- Talvez... Mas esse aqui... - Ele fez uma pausa, olhando para a lápide coberta de neve. - ...Não está mais aqui. Só um monte de pedra vazia.

Ela tragou o cigarro de novo, deixando o silêncio se acomodar entre eles. O garoto não parecia nem um pouco interessado em se levantar, e a mulher, por alguma razão, não se importava com isso. Estavam presos em um momento surreal de calma.

- Essa cova... - começou ela novamente, quebrando o silêncio. - É do meu filho.

O garoto finalmente esboçou alguma reação, mas ainda assim nada forte o suficiente para mudar sua expressão. Ele piscou lentamente.

- Me desculpe. Nesse caso, acho que devo sair daqui.

- Não, tá tudo bem - ela balançou a cabeça, soltando outra nuvem de fumaça. - Ele morreu bem jovem, era só um bebê. Fomos atacados por um espectro no aeroporto.

A mulher ficou em silêncio por alguns segundos. Seus lábios trêmulos podiam ser por causa do frio, ou talvez pelo esforço de falar sobre algo tão doloroso. O garoto, por sua vez, ficou quieto, sem saber como reagir.

- ... Acho que não sei o que dizer. - ele finalmente falou, com um suspiro.

- Claro que não. - Ela soltou uma risadinha, amarga. - Você foi criado para lutar, não para consolar.

O silêncio retornou, mas dessa vez havia algo mais denso nele. Finalmente, o garoto quebrou a quietude.

- ... Como agradecimento, por me deixar descansar aqui, prometo que vou cuidar de você no lugar dele. - Sua voz saiu como um murmúrio, quase inaudível na neve que caía ao redor.

Ela olhou para ele, surpresa. Um sorriso triste se formou em seus lábios. Aquilo, definitivamente, não era o que ela esperava ouvir. Ela tragou mais uma vez o cigarro, soltando a fumaça enquanto observava o garoto deitado em meio à neve, sem demonstrar qualquer sinal de que tentaria levantar.

- Isso é... estranho. - ela murmurou, sem conseguir evitar um sorriso fraco.

E o silêncio voltou, enquanto a neve continuava a cair.

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Death Behind: 2 Idiotas 1 GatoOnde histórias criam vida. Descubra agora