Olhe, eu não queria ser um peão irresponsável.
Se você acorda uma da tarde, seja lá qual for o dia, é certo que o restante dele não vai ser nada agradável. Principalmente em um dia que lhe seja especial. Sério, você não vai querer ser pego desprevenido por alguém esmurrando a sua porta e acordar assustado, confuso e fedendo.
E foi justamente isso o que aconteceu comigo.
Ééé... bom dia! Eu acho... meu nome é Dylan.
Tenho 17 anos de idade. Sempre tive pouca motivação para acordar cedo, mas nessas últimas semanas, desde que cheguei em Chessia, meu país natal, isso se elevou a um nível que nunca vi antes.
Aqui, em Chessia, é tudo preto e branco... eu sei, isso é muito estranho. Além disso o país é divido em cidades muradas, para manter a segurança dos habitantes a respeito dos elefantes espalhados por toda parte. Esses animais são dóceis com os chessianos em geral, mas existem acidentes e exceções que podem irritá-los. Logo, é uma medida preventiva necessária.
Todos os cidadãos são ensinados sobre a história do país desde a tenra idade, inclusive do porquê do território ser descolorido. Nosso país é muito discriminado mundo afora, mas, apesar disso, somos um povo muito acolhedor, em uma terra muito produtiva e bela, embora sem cor. Por isso, muitos vêm aqui em busca de acolhimento, tais como deficientes exilados de suas antigas pátrias em decorrência do enorme estigma social, nômades e desbravadores malucos. Fazendo com que levemos a fama de país invisível, uma nação de gente apartada, sem cor, sem relevância e quase inabitável, em consequência dos imprevisíveis e temíveis elefantes que o cercam, extremamente territorialistas e hostis com aqueles fora de Chessia.
Talvez o que esteja afetando meu sono seja a casa que o bispo Nefredo arrumou para mim. Ela é mais confortável que a minha antiga, um cubículo que ficava ao lado da muralha, onde toda manhã eu acordava com os pisos estrondosos dos elefantes lá de fora. Pois é, minha falta de costume com uma boa moradia deve estar me deixando mais lesado.
Nefredo é um dos chamados "Peças Principais" de Chessia, como seu posto é de bispo, ele é responsável pelo auxílio aos mais necessitados e monitoramento das instituições públicas. No meu caso, sou um peão, patente encarregada de executar missões simples dentro e fora do território nacional, nos arredores do país, mas não a nível mundial como a classe dos cavalos.
Nessa última vez que completei uma tarefa fora de Chessia, tive um encontro nada agradável com um grilo gigante cuspidor de muco, apenas fui capaz de fugir dele por ter usado o sinalizador no muco, que era inflamável e estava impregnado no corpo do bicho. Não era para aquela coisa estar próxima à fronteira de Chessia, essas coisas não costumam se aproximar por medo dos elefantes, mas naquele momento, pela ausência deles, a criatura deve ter tomado alguma coragem.
Eu não enxergo, mas consigo definir formas, energia, cores e identificar substâncias através dos sentidos mortais e espirituais aguçados pela vontade, o Thelema. Caso eu não tivesse o sinalizador naquele momento, eu seria obrigado a abrir os olhos e arriscar usar meu ritual de cegueira, que não sei controlar muito bem e fere meus olhos quando o conjuro. Desde que tenho lembranças, eu sabia fazer esse ritual, sendo que é necessário, para o nível de complexidade dele, desenvolvê-lo conscientemente.
Talvez você não saiba, mas Thelema é a energia advinda do controle da vontade e é por meio dela que se torna possível dominar a potência imanente e transcendente do indivíduo, o que envolve diferentes restrições, exercícios e sacrifícios, meios pelos quais é possível "convencer a realidade" sobre o seu valor e prová-la de que a sua vontade é digna do poder, da força necessária para alcançar o objetivo definido. É uma arte controvérsia mundialmente e de difícil aprendizagem, adotada por algumas nações e demonizada por outras. E, assustadoramente, outras criaturas podem desenvolver o Thelema, o que pode ser passado hereditariamente e torná-las cada vez mais estranhas e fortes, como é o caso da fera que enfrentei e dos elefantes da região.
Eles o adquirem por diversos motivos, como pela necessidade de proteger uma cria ou em lutas vorazes, suscitando um sentimento de sacrifício para proteger o filhote ou despertando um desejo enorme de sobrevivência e, portanto, originando o Thelema. Podem desenvolvê-lo, também, por meio da exposição a uma região ou a outro ser dotados da energia da vontade. Existem outras características dessa energia e maneiras mais conscientes e sofisticadas para aprimorá-la, mas são inúmeras e complexas demais para explicar agora. Não bastava esses animais serem gigantes, tinham que ter um teor sobrenatural, valeu seleção natural!
Agora, quanto ao meu despertar nada confortável. Na porta havia três vozes, não consegui discernir de quem elas eram. A tontura, após levantar rápido da cama, não permitia que eu as distinguisse, mas sabia que elas eram dos meus colegas de sala.
Eles estavam me chamando para o torneio dos países vizinhos. Um evento que acontece uma vez a cada ano, com o local de realização sendo revezado entre os países que compõem a competição. Eu não sou muito fã de participar dela, e bem... eu tenho meus motivos.
Sempre que esse torneio acontece, alguém sai com uma nova condição física, como um braço a menos, um nariz quebrado, uma perfuração no tórax ou até mesmo parte dessa para melhor.
Contudo, infelizmente, ele é impreterível para se conquistar uma vaga na trupe de exploração mundial, os cavalos. Ocupação que eu sonho em exercer desde pequeno.
- Dylan? Levanta cara! - Alguém gritou, a voz abafada pela porta.
- O torneio já vai começar! Esse ano a gente já compete oficialmente, esqueceu?
"Minha nossa!" - gritei, dentro da minha cabeça, é claro, então só eu ouvi. O lembrete me acertou como um soco na barriga. Não me lembrava que a etapa de aprovação tinha sido antecipada. Estava certo de que seria no ano seguinte. Todas as outras vezes que participamos dele foram apenas treinos, um preparo para a fase seletiva.
A ansiedade veio subitamente, meu estômago começou a embrulhar...
- Já vou! Espera eu tomar um banho e me vestir. - Mal pude falar devido ao bolo na garganta que sempre aparece quando estou nervoso.
Então, fui arrumar-me.
Ah, como disse antes, eu sou cego. Não tenho muita agilidade para realizar tarefas que exijam mais da visão, como se vestir bem... demorei tanto que, quando abri a porta para ver quem eram, já não estavam mais lá, não ouvi nem senti nenhuma movimentação.
Abandonaram-me, pensei.
Quando de repente uma mão familiar se apoiou em meu ombro, era, sem dúvidas, Breanna. Minha colega que sempre me guiava nessas situações difíceis e que, manhosamente, pregava-me peças todas as vezes que podia.
Dessa vez, ao invés de um susto, senti-me imediatamente acolhido e aparado, a ansiedade se dissipou tal qual faz o vapor liberado ao abrir a tampa de uma panela no fogo. Seja lá qual fosse a intenção dela com esse toque, eu definitivamente não consegui interpretá-la.
Talvez ela soubesse que eu estava em um momento mais desesperador do que de costume, que a minha ansiedade estava excruciante, e tentou me acalmar do seu jeito, pregando peças.
Somente ela podia fazer isso, além dos adultos mais experientes em Thelema de Chessia. Não era qualquer um que tinha habilidades suficientes para desviar da minha percepção imanente.
Breanna, semelhante a mim, nasceu com uma deficiência, ela não tinha uma das pernas. No lugar dela, havia uma energia flamejante, etérea, macabra e esverdeada, destacando-se naquele mundo cinza. Eu conseguia caracterizá-la pela simples sensação de estar perto dela e pude definir a cor pela frequência das ondas de luz. Era aquilo, era aquela coisa que, de alguma forma, camuflava-a tão bem, como se quisesse escondê-la de todos os perigos eminentes em um mundo com tamanha hostilidade e caotismo. A única vez que a questionei sobre tal membro, ela disse que não sabia muito bem o porquê daquela perna bruxuleante estar ali. Desde então, percebi que ela ficava desconfortável ao tocar no assunto e jamais tangenciei o tema novamente.
- Vamos logo, Cabeça de Pamonha. - Disse ela.
- Não quer ficar nesse fim de mundo preto e branco para sempre, né?
**OBS: Caso identifique qualquer erro de português ou incoerência, sinta-se à vontade para alertar-me. A história e seus capítulos podem mudar ao decorrer do tempo, posso fazer mudanças frequentemente. Sou um escritor amador e o enredo ainda não é sólido o suficiente :)
Obrigado por ler!!!
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Thelema: O Caminho dos Invisíveis
FantasíaEscrevendo uma história de fantasia de maneira avulsa, porém com carinho. A história se passa em um universo indomável, com criaturas, espíritos e possibilidades inimagináveis, onde uma energia natural, peculiar e complexa é propulsora das diversas...