Quando nos conhecemos.

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Na mesma noite do capítulo anterior.

Wlange está deitada de lado, os braços e pernas espalhados pelo colchão. A coberta está desalinhada, revelando um pé descalço para fora do cobertor. Seus cabelos castanhos e desgrenhados cobriam o rosto, desarrumada, como se estivesse caido no sono derrepente. A boca ligeiramente entreaberta, deixando escapar um leve ronco. Havia algo de adorável naquela cena, uma garota que antes mal dormia por conta das caçadas, agora se encontra dormindo despreocupadamente.
Sua colega de quarto ainda não apareceu, Wlange tentara não dormir esperando a colega chegar, mas a companheira de dormitório passara o dia todo fora.

De repente, um estrondo na janela a acordou, rompendo o silêncio. Wlange reconheceu o som, mas decidiu fazer de conta que ainda estava dormindo, curiosa para observar a reação da suposta bruxa diante da armadilha que havia preparado.

Becki entrou pela janela com dificuldade, seu tamanho dificulta a passagem. Ao entrar, a bruxa foi surpreendida por uma garota desconhecida deitada sobre a cama que antes estava vazia. Ela ficou com raiva, sabia que iria ter uma colega de quarto em breve, mas vê-la ocupando seu espaço a fez ferver de raiva.
Becki bufa, cerrando os punhos. Seus olhos profundos encontram a escrivaninha, que para sua surpresa, uma bíblia está aberta sobre ela, com páginas amareladas e trechos sublinhados. Ao ver a bíblia, Becki imediatamente sente repulsa e medo, seus olhos ardem ao ver o livro aberto.

Para os bruxos, a bíblia e outros símbolos cristãos é vista como um símbolo de opressão porque representam o oposto dos valores e crenças da bruxaria. Além disso, as crenças das bruxas foram consideradas inválidas de acordo com a moral cristã. Para Becki, a bíblia representa uma ameaça à sua liberdade e considera o cristianismo muito desrespeitoso.

Becki cerra os punhos, imediatamente pegando a bíblia e a jogando pela janela, como se afastasse um pesadelo. Wlange, com os olhos entreabertos fingindo dormir, viu Becki jogando sua bíblia pela janela. Isso confirma suas suspeitas de Becki ser uma possível bruxa. Wlange imediatamente salta da cama, fingindo estar surpresa com o ato de Becki.

- Ei, ei, ei!- Wlange diz, falsamente preocupada- por que jogou minha bíblia pela janela?

Becki, impassiva, encara Wlange por alguns momentos, andando com sua postura impecável em direção até sua cama.

- Não quero essas porcarias presentes no quarto.- ela diz, friamente.

- Por que chama a bíblia de porcaria?- Wlange pergunta, Inquisitiva. Ela já sabe da resposta, mas quer ouvir sair de sua boca.

- A bíblia representa regras rígidas e opressão.- Becki afirma, estabelecendo-se em sua cama- Religião é algo que pode limitar a liberdade, eu detesto a forma como muitas vezes marginalizam que é diferente.- Becki fita Wlange com descontentamento, que está em pé ao lado da janela com braços cruzados- Dessa forma, agora que somos colegas de quarto, não quero nenhum símbolo cristão por aqui.

Wlange a pondera por alguns segundos, um sorriso zombeteiro nasce gradualmente em seus lábios. Até que finalmente ela começa a rir sarcasticamente, deixando Becki confusa.

- O que você vai fazer de eu te desrespeitar? Me transformar em um sapo?- Ela torna a rir.

Becki levanta uma sombrancelha, desconfiada, ela se ponha de pé. Wlange cessa a rir aos poucos, vendo a expressão de Becki endurecer.

- Posso fazer pior do que isso.- Becki dia à voz serena, quase monótona, mas há peso em suas palavras.

- Sei o que você é, menina.- a caçadora observa a bruxa com um olhar tranquilo e enigmático- Eu já encontrei algumas que achavam que seus feitiços eram o ápice do poder. Você é diferente, eu sinto isso. Sua força é palpável. Mas, ao contrário delas, você não precisa de magia para impressionar. Vamos conversar como iguais?

Becki sente o fogo subir a sua cabeça, seus olhos se iluminam, adquirindo um tom vermelho e intenso. Becki já enfrentou caçadores anteriores, reconhecem que eles são perigosos e inteligentes. Mas ela tem magia, conseguiu eliminar todos os que atrapalharam em seu caminho.
Ainda com os olhos vermelhos, a bruxa se aproxima de Wlange e inicia a recitar a magia. 

"Ignis intus ardeat, perditio adveniat..."

Antes que ela tivesse a chance de prosseguir com o feitiço, uma mulher surgiu na porta. Ambas as garotas olham em direção a jovem senhora, a espetora que supervisiona o dormitório feminino todas as noites para conferir se todas estão presentes.

- Posso saber o porquê estão acordadas a essas horas?- indaga a grisalha, colocando as mãos na cintura.

- Só estávamos conversando.- Wlange explica, trocando olhares com Becki.

- Não é hora de conversar, garotas! Vamos para a cama que amanhã terão que acordar cedo.- a senhora ordena, franzindo o cenho.

- Sim senhora.- a bruxa afirma- Vou apenas tomar um banho antes e ir dormir, se me permitir.

A espetora encara as duas, assentindo lentamente com a cabeça, em seguida, fechando a porta. Dessa forma, Becki se volta para Wlange, um sorriso enigmático em seus lábios.

- Parece que temos uma...visitante especial, não é?- Começa Wlange, com um olhar penetrante.

- Ah, quem diria? Uma caçadora tão jovem, mas tão curiosa.- Becki comenta, despretensiosa.

- O que você anda fazendo em Serra Vale à noite, mulher?- Diz Wlange, cortante.

- Explorando, esse lugar é cheio de segredos, né?- ela contesta, um sorriso provocador.

- Segredos que podem custar caro. Eu conheço seu tipo.- Wlange replica, cerrando os punhos.

- Eu também conheço o seu. Caçadores costumam a ser tão...resolutas. Mas...você parece diferente.- Becki afirma, um brilho frio nos olhos.

- O quê te faz pensar que sou incapaz de acabar com sua raça?- Wlange desafia, dando um passo à frente.

- Porque você não parece tão disposta a agir.- a bruxa explica, encarando-a- Um pouco de hesitação não é comum em caçadores.

- O que você quer? Não tô aqui pra joguinhos.- A caçadora comenta, baixando a guarda.

- Jogos? Não, isso é mais sobre...possibilidades. Você pode ter seu espaço, e eu tenho o meu.- Becki sugere, pouco interessada.

- Acha que vai me convencer com palavras vazias?- Indaga Wlange, arqueado uma sombracelha.

- Ah, não é sobre convencer. Trata-se de...coexistir. E quem sabe até trocar algumas informações.- Becki tenta persuadi-la, um sorriso sultil dança em suas púrpuras.

- Coexistir? E o preço disso?- a caçadora indaga, hesitante.

- Um pequeno favor pode abrir muitas portas.

Quando a proposta foi feita, Wlange hesitou, seu olhar revelando uma mistura de curiosidade e desconfiança. Nunca havia entrado em um acordo com algum monstro ou bruxa, matava sem pensar duas vezes. Isso seria antiético, estaria violando os princípios morais e éticos como caçadora.
Porém, a outra metade de Wlange diz a ela que não é mais uma caçadora. Entrar em acordo com uma bruxa não seria antiético, ja que não as caçava mais.

- E se eu não confiar em você?- Wlange finalmente responde, pensando.

- Confiança não é algo que todos podem ter facilmente, menina.- Becki diz, calmamente- A sabedoria está em saber com quem se aliar.

- Muito bem. Um acordo, então. Mas saiba que eu to de olho em você.- Wlange fala, com um ar sério.

- Olhar é sempre bom.- Becki é Wlange finaliza o acordo com um aperto de mão, estabelecendo uma trégua entre elas- Eu também estou de olho em você.

As duas se encaram, o silêncio carregado de tensão, enquanto cada uma pondera sobre as intenções da outra, selando o pacto com incerteza.

O Legado das Sombras.Onde histórias criam vida. Descubra agora