Vale Verde - Parte 2/2

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 Jogo o último pedaço de osso na fogueira, limpando a boca com as costas da mão antes de apoiar minha cabeça na divisória da porta da cozinha. E simples assim o único resquício do animal desaparece, fiz uso até das partes não comestíveis, as deixando de lenha. De alguma forma, dar cabo de seus restos mortais me faz sentir mais monstruosa do que quando estava com minhas mãos em volta do seu pescoço, sugando sua vitalidade.

Tento me consolar com a ideia de que ele também teria feito o mesmo comigo caso precisasse, mas não é fácil quando a lembrança que tenho do bichinho o retrata como sendo tão macio, tão confuso, tão aliviado por pensar ter achado alguém que assim como ele, só queria um lugar seguro para passar a noite, e que parecia disposto a dividir calor e um pouco de carícia.


Balanço a cabeça, afastando essas ideias. Foi apenas um ato de sobrevivência, ou ao menos é o que tento dizer para mim mesma, embora mentir para si seja uma tarefa árdua as vezes. Parece que quanto mais queremos acreditar numa mentira, mais tomamos ciência de que ela não é real. De qualquer forma, eu me sinto culpada, e isso já mostra que não sou um monstro. Se o céu dos coelhos existir, espero que isso chegue até ele e sirva de consolo.

O pouco conforto que me alcança é saber que fui justa com o animalzinho. Uma morte rápida, indolor, como deve ser. Como, caso a minha venha até mim, eu gostaria que fosse. Não consigo enxergar a necessidade de mais sofrimento. Não basta a luta diária para encontrar suprimentos e razões para seguir; o mínimo que pude devolver ao coelho, por ter me alimentado, foi uma partida rápida.


Ainda assim, mesmo que eu embale esses pensamentos como um cobertor quente ao meu redor, as rajadas frias da noite fazem questão de me lembrar do monstro que habita por trás de cada decisão fatal que tomo, mesmo que a maior parte delas seja para garantir mais um dia de vida.


A chuva voltou há poucos minutos, com a mesma voracidade que me chicoteou no caminho até aqui. E a sombra... Bem, ela foi embora. Na verdade, não sei dizer se de fato entrou nesta casa em algum momento.


Às vezes, sinto que estou perdendo o controle de mim mesma. Minha racionalidade me ataca covardemente por trás à medida que tento enxergar lógica no que não necessariamente deveria ter. Mas, afinal, se não há lógica, por que as vejo desde pequena? Por que me perseguiram e me acompanharam por toda a vida?


Já busquei diagnósticos, ainda que em segredo. Meus pais religiosos nunca lidaram muito bem com o fato de que sua filha enxergava sombras. E foi inútil.


Nada nos exames, remédios, e dinheiro jogado fora com tratamentos. Sessões onde descobri mais traumas em mim do que gostaria. E o foco principal, o problema que me levou até essas clínicas — as sombras — ainda é um mistério para mim.


Aos poucos, o embalo das lufadas de água lá fora me faz piscar mais devagar. Ainda que desconfortável, a parede da cozinha se torna meu travesseiro — um apoio rústico para minhas costas doloridas pela caminhada quase o dia todo. Ainda assim, é uma alternativa rápida para o sono, que chega veloz. Meus pensamentos sobre a sombra e o coelho começam a se fundir e se embaralhar, enquanto sinto minha racionalidade escorrer para fora do meu cérebro conforme minha visão vai ficando turva e embaçada.


Por um breve momento, tudo parece deixar de existir. Minha mente só funciona o bastante para tomar ciência de seu próprio cansaço. É como se eu fosse uma batata ou uma ameba, mas é confortável

O que há nas SombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora