O Amante do Espelho

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Sempre tive fascínio por aquilo que é inexplicável: objetos antigos, histórias escondidas, segredos perdidos nas sombras. Talvez seja por isso, que escolhi um apartamento antigo, no centro da cidade. Após o meu novo emprego, me forçar a sair do meu recanto nas montanhas. Adorava o sossego e a paz, que aquele local me trazia, mas estava na altura de mudar. E aquele apartamento, parecia chamar-me. Atraía-me como um enigma à espera de ser resolvido.

Ao entrar, senti logo o ambiente peculiar. O apartamento tinha um charme decadente, com paredes amarelas, desbotadas pelo tempo. As janelas altas deixavam a luz entrar em ângulos improváveis, iluminando o pó que parecia dançar no ar. O silêncio envolvia cada canto, de forma estranhamente pesada, como se guardasse segredos antigos. Ao mesmo tempo, a ausência dos barulhos da cidade parecia marcar uma separação distinta, do espaço e tempo.

Foi então que o vi. No canto da sala, havia um grande espelho, de moldura complexa, quase escondido entre as sombras. Fiquei hipnotizada. Aquela peça solitária, esquecida pelo tempo, parecia ter uma presença própria, uma aura que não consegui explicar.

Ao tentar aproximar-me do espelho, tropecei numa das muitas caixas deixadas pela empresa de mudanças. Empilhadas como sentinelas silenciosas pelo espaço. O espelho parecia chamar-me, quase como se aguardasse, que eu o investigasse. Mas, antes de me entregar a esse fascínio, precisava urgentemente de criar um lar. Naquele espaço desarrumado, cheio de sujidade e teias de aranha.

A casa parecia ganhar vida, cada vez que removia a espessa camada de pó. Como se esta, fosse um manto, que adormecia o lugar. À medida que o pano deslizava, cada superfície revelava um pedaço da sua verdadeira essência. Uma história guardada, por muito tempo. Da mesma forma, sentia como se cada objeto, que levara, tivesse um lugar naquela história. Como se sempre tivesse pertencido aquele lugar. Realçando cada parte da personalidade da casa.

Por fim, terminei a minha tarefa. Logo após limpar, a última gota de passado, presente no espelho. Estava pronta, para mergulhar nos seus mistérios, quando um barulho rompeu o silêncio. Era o meu estômago, lembrando-me que era hora de jantar. Como não havia levado comida comigo, precisava urgentemente de fazer compras. Apressei-me a sair, antes que a loja fechasse, mas sem conseguir afastar o espelho dos meus pensamentos.

Quando regressei, o apartamento parecia diferente. A luz fraca que entrava pelas janelas criava sombras inquietantes. Tudo parecia igual, mas, ao mesmo tempo, diferente. Como se o apartamento me observasse, à espera. Tentei ignorar a sensação e fui arrumar as compras. A fome apertava, então preparei algo simples e comi em frente à velha televisão.

Mas os meus olhos voltavam sempre para o espelho. A sua presença tornava-se quase opressiva. Sem conseguir resistir à sua presença, levantei-me, abandonando o meu prato, no lugar vazio ao meu lado. Avancei lentamente até ao espelho, como se ele fosse um animal que eu não queria assustar. Já na sua frente, olhei para o seu reflexo, esperando ver-me a mim mesma. Afinal, era isso, que os espelhos faziam, mas não este.

O seu reflexo parecia a margem calma de um rio, levemente agitado pela brisa do ar. Mas mais do que uma imagem levemente distorcida, algo se sobrepunha à mesma. Os traços de outra pessoa, um homem, com feições marcantes, que me observava de volta. Dei um passo atrás, com o coração a bater descompassado.

Seria apenas a minha imaginação? Ou algo, ou alguém, estava realmente ali, do outro lado do espelho?

"Olá?" A minha voz era um sussurro, vacilante, enquanto tentava recuperar alguma sanidade. Precisava garantir que não estava a alucinar.

"Olá..."

A resposta veio baixa e rouca, e o silêncio na sala pareceu tremer ao som daquelas palavras.

O beijo da sombraOnde histórias criam vida. Descubra agora