Dois

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Nem sempre foi assim. Tenho apenas alguns fragmentos na minha memória de como as coisas eram antes de se tornarem do jeito que estão atualmente. E eu quero manter essas memórias muito bem guardadas na minha cabeça, em segurança. Se eu pudesse tirá-las de dentro da minha cabeça para guardá-las em uma caixa só para ter certeza de que nunca seriam perdidas, faria sem pensar duas vezes.

Vivo com um medo mortal de um dia acordar e minhas memórias terem desaparecido. Porque se isso acontecer, vai ser a certeza de que eu nunca mais os terei de volta. Não me lembrarei dos rostos deles. Não me lembrarei da voz dela. Não me lembrarei do abraço dele. Não me lembrarei da risada dele. Não me lembrarei do cheiro dele.

Tudo o que me restará será um abismo entre onde eles costumavam estar e a minha vida atual. Essa vida pela qual eu deveria ser grata, mas não consigo.

Eles morreram quando eu tinha cinco anos. Minha mãe, meu pai, meu avô e meu irmão gêmeo. Me lembro bem de cada um de seus rostos. Minha mãe era linda, a mulher mais linda que eu já vi. Seus cabelos eram castanhos escuros, como os meus, com os olhos verdes marcantes e um sorriso amoroso. Me lembro do pai dela, meu avô. Ele dava os melhores abraços do mundo.

Papai era meu herói. Sempre arrumava um tempo para brincar comigo e com meu irmão quando chegava do trabalho, mesmo que estivesse cansado. Eu amava ficar em seu colo, sentindo o perfume específico que só ele tinha. Era uma mistura de pêssego com água do mar.

Meu irmão gêmeo, Pietro. Ele era irritante, sempre implicava comigo por alguma coisa. Mas me lembro dele batendo em um colega da escola porque o garoto tinha quebrado minha Barbie. Mesmo implicando comigo, ele sempre estava lá por mim.

Essas pessoas eram o meu mundo. Elas eram a minha vida.

E então elas se foram.

Nunca vou me esquecer que eu também deveria ter ido com elas naquele dia. Eu não deveria estar aqui. Parece que há algo fora de lugar no mundo porque toda a família Maximoff deveria estar junta.

Eu estava resfriada. Estava com febre e minha mãe não queria me deixar sair da cama depois de ter me entupido de remédios que seguiam uma receita caseira ensinada por sua avó. A neve estava ameaçando cair, como sempre fazia naquela época do ano. Estávamos visitando a casa dos meus avós, os pais da minha mãe, como fazíamos com frequência. Havia um filme no cinema que meus pais e meu irmão queriam ver. Eu também queria ver o filme, mas meu resfriado estava ficando pior.

Minha avó não era do tipo de pessoa que saía para assistir filmes no cinema, então meus pais levaram meu avô. Para dar a ele um passeio fora de casa, eu acho. Não consigo imaginar que viver com minha avó fosse divertido.

Não me lembro do que aconteceu depois que eles saíram. Só sei o que me disseram e eu tenho que guardar isso também na minha memória. Vovó diz que não adianta ressuscitar histórias antigas porque só vão nos machucar com as lembranças. Ela diz muitas coisas assim.

Foi muito rápido. Havia gelo na estrada. Havia um motorista que perdeu o controle de seu caminhão. E não havia nada que meu pai pudesse fazer. Houve cinco pessoas mortas. Houve luto.

Houve uma menina de cinco anos que não entendia para onde sua família tinha ido. Houve uma senhora, já tendo feito seu tempo criando uma criança, mas que foi deixada como a única guardiã legal daquela menina de cinco anos.

E ainda há a perda. Ainda há o luto.

Não consigo deixar de sentir falta deles todos os dias. Se ao menos minha mãe ou meu pai tivessem ficado em casa para cuidar de mim. Se ao menos meu pai não odiasse dirigir por rodovias movimentadas e insistisse em pegar vias alternativas. Se ao menos tivessem ignorado meu resfriado e me levado com eles ou ignorado o filme e ficado em casa.

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