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O sino da igreja tocou. Eram nove da manhã e pela primeira vez na história da pastelaria ainda não havia nem pão nem bolos a coser no forno. Em dias normais já seria a segunda fornalha que iria ser toda vendida assim que a missa acabasse e o estabelecimento enchesse. Mas não era um dia normal, e o mais frustrante era que eu não sabia porquê.

A Cath e o Dante discutiam lá em cima. Eu estava cá em baixo sentada ao balcão em frente à caixa registadora. Parecia um zombie, ou era como eu me imaginava naquele momento. Algo tinha mudado, só não sabia bem o quê.

Corações desaparecidos. Aquelas palavras ecoavam na minha cabeça. Mas se não eram lobisomens...eram o quê? A minha mãe sabia, e o outro também mas ninguém se lembrou de me contar alguma coisa. Então deixaram-me ali, desamparada e com medo. Eu não estava exactamente sozinha no entanto sentia-me quase excluída.

Olhei pela janela onde vi o senhor Frederick a aproximar-se. Provavelmente vinha comprar pão. Ele era judeu, logo nunca ia à missa de cá, e também não gostava de grandes confusões por isso vinha quase sempre no horário em que esta decorria. De repente voltei a sentir um aperto no peito. Uma sensação parecida com a que tinha perto de Dante. Mirei a janela uma segunda vez e caí instantaneamente. Lá fora atrás do velhote estava uma rapariga. Alta, extremamente magra e de cabelo branco. Parecia uma versão feminina de Dante. No chão ouvi um grito de dor. Não levantei a cabeça. Sentia-me demasiado fraca para isso, ou melhor, sentia-me demasiado covarde.

Felizmente não fui a única a ouvir o uivo de sofrimento humano produzido lá fora. Nas escadas ao lado do balcão vi o albino a estender-me a mão.

-Não te mexas- as palavras dele soaram como um sussurro que quase não ouvi. Dirigiu o olhar para a rua um último momento e depois fez um sinal para eu subir. Rastejei até à escada e subi.

O que raio foi aquilo? Foi o primeiro pensamento que tive assim que me sentei encostada à parede que dividia a escada do resto da pastelaria. O aperto no peito transformou-se numa dor forte que quase me impedia de respirar. Dante olhou para mim nos olhos e pela primeira apercebi-me de não eram pretos mas sim vermelhos.

Ele também não é humano?

Ele acenou a cabeça em sinal de negação como se me lê-se os pensamentos. De seguida levantou-se devagar e cuidadosamente e pegou-me ao colo subindo o resto da escada.

Fixei o olhar nele. Quem raio és tu? Ou melhor, o que raio és tu?

Levou-me até ao quarto da minha mãe. Assim que lá entramos fui  pousada  na cama onde estava uma mochila que parecia cheia. Cath saiu do seu esconderijo atrás da porta da casa de banho. Dante afastou-se para fechar a porta do quarto e à medida que o fazia a dor no peito ia amenizando e finalmente recebi ar suficiente para conseguir proferir palavras.

-Eu vi uma rapariga. Foi ela que fez aquilo. Porque é que ela fez aquilo? Porque é que isto está a acontecer?- a minha voz soou ríspida e amarga.

A minha mãe e Dante entre olharam-se. Ela negou com a cabeça e correu para mim. Abraçou-me com força enquanto as lágrimas começavam a escorrer-lhe pela face. Aquela reação assustou-me ainda mais. Virei-me para Dante. Ele olhou-me nos olhos e suspirou enquanto os cabelos despigmentados voltavam a assumir a cor preta habitual. A dor no peito cessou.

-Demónios.

A fúria que sentia desapareceu. Não perguntei nada, não disse nada, agarrei-me a Catherine com força e fechei os olhos. Senti Dante amover-se mas continuei de olhos fechados.

Repentinamente ouviu-se o barulho de algo a ser destruído. Levantei as pálpebras e olhei em volta. Cath pôs a mochila que estava em cima da cama às costas e foi a casa de banho onde tinha deixado a outra e deu-ma. O outro permaneceu imóvel.

Os seus olhares voltaram a cruzar-se. A minha mãe estendeu-me a mão.

- Anda querida - a voz doce dela acalmou-me mas ainda assim mantive-me paralisada. Dante fez-lhe sinal para ir à frente e depois pegou-me ao colo.

Saímos de casa à cautela pela porta das traseiras e avançamos pela ruela até ao carro da minha mãe. Ela entrou para a frente e eu e o meu transportador para os bancos de trás. O carro arrancou rumo à estrada 3, a que saía da cidade para norte.

No carro deitei a cabeça nas pernas de Dante. Ele não me impediu e acariciou os meus cabelos cor de vinho no que talvez tenha sido um gesto de carinho. Soube bem, mas não me tranquilizo.

Demónios! É isso que a rapariga é? É isso que ele é? EU VIVI TODA A MINHA VIDA PERTO DE UM DEMÓNIO E NINGUÉM ME DISSE NADA! Será que era por isso que a mãe me afastava dele, que ele me afastava dele? Seja como for não resultou.

Os meus pensamentos foram interrompidos por uma travagem brusca. Cath saiu do carro perplexa, eu levantei-me. À frente a ponte que costumava unir a nossa aldeia à vizinha estava completamente destruída. Ela voltou para o carro e depois de um suspiro começou a fazer marcha atrás.

Subitamente parou.

- Saíam - disse Cath enquanto soluçava lágrimas num som quase gemido. A minha vontade de cumprir o que parecia ser uma ordem era nula contudo a minha mão pousou na porta de uma forma involuntária. Uma reação díspar à de Dante que continuou sentado no assento traseiro ao mesmo tempo que travava um duelo de olhares com Catherine cada vez mais tensa.

- SAÍAM! - o gemido transformou-se num grito e desta vez não houve contestações por parte de ninguém.

Saímos os dois do carro e dirigimo-nos à janela aberta na porta do condutor. Acho que comecei a chorar mas não senti as lágrimas escorrerem-me pela cara.

- Encontramo-nos nos Inferno? - disse o demónio levantando a ponta direita da boca naquilo que talvez fosse um sorriso.

- Só se eu não poder evitar.

O carro arrancou. Agarrei-me com o todas as minhas forças a Dante num abraço que foi correspondido. O sol da minha vida tinha acabado de se por e algo me dizia que a noite ia durar para sempre.

Subitamente, deixei de sentir o chão e uma sensação de queda apoderou-se de mim. Obriguei-me a manter os olhos fechados e agarrei-me com mais força à ultima pessoa que me restava. O vento começou a bater contra as minhas costas com cada vez mais força fazendo o meu cabelo solto esvoaçar de encontro ás minhas bochechas. Então tornou-se difícil respirar. A sensação de queda foi atenuada por uma dor estranha no peito, seguiu-se uma forte dor de cabeça deixando também de sentir o resto do corpo. Senti algo molhado, e o frio que já se fazia sentir começou a aumentar e a aumentar até que todo o meu corpo se tornou um cubo de gelo. Não resisti para experienciar mais nada.

Quando abri os olhos estava sozinha numa sala. Não era nem muito grande nem muito pequena mas era estranha o suficiente para fazer com que me senti-se uma Alice no pais das maravilhas. A divisão era completamente almofadada com tecidos das mais variadas cores e com os padrões mais singulares e exóticos que devem existir no mundo inteiro para além das almofadas, peluches, brinquedos e outras tralhas espalhadas por tudo quanto era canto. No meio do teto existia uma porta quadrada avermelhada com desenhos a azul, dourado e verde mas não existia nenhum indicio de escada ou coisa que se parece-se. Logo por baixo da porta estava um pequeno tabuleiro com um prato onde se encontrava o que parecia ser uma tentativa de bife e batatas fritas e um copo com um liquido cor de rosa espesso. No tabuleiro também estava um pequeno bilhete no qual se podia ler: Come isto

Ao ler as palavras escritas no pedaço de papel comecei a rir. Não consegui pensar em nada, era tudo demasiado insano para consegui por isso ri, ri até a barriga me doer de tanto rir. Quando me acalmei o meu sorriso desapareceu. Afastei o tabuleiro debaixo da porta substituindo-o pelo meu corpo deitado e deixei que as minhas pálpebras escondessem os meus olhos esverdeados.

- Caí na toca de um coelho! - disse em voz alta na esperança de tornar a frase mais realista. Não resultou.

Um barulho atrás da porta interrompeu os meus pensamentos absurdos.

Angels and DemonsOnde histórias criam vida. Descubra agora